Pedaços Humanos

sábado, 1 de maio de 2010

Um dia


'“Vou te ligar hoje, umas 9 da noite. Por favor, atenda. Beijo”

Tremeu quando viu o nome dele em seu e-mail. Na verdade, não foi bem o nome, mas o assunto.

“Preciso falar”.

Tudo havia sido complicado demais, dramático demais, barulhento demais, inexplicável demais. As conversas eram intensas, as coincidências eram absurdas, o sexo espetacular. Mas havia uma pecinha quebrada em algum lugar. Como um carro velho. Sentiam os ruídos, mas não achavam o problema. Sabiam que estavam chegando ao limite, que logo não haveria mais conserto. Insistiram, empurraram e tentaram além do que deveriam. Perderam o respeito e a paciência até se tornarem irreconhecíveis. O processo foi lento e tardio, o que só prolongou o sofrimento e criou mais mágoas do que era necessário.

Dois anos depois, o e-mail na caixa de entrada trouxe à tona tudo que ela jurava ter superado. Reviveu as sensações dos anos finais de casamento. O medo suspenso no ar, sabendo que brigariam a qualquer momento. O receio de falar qualquer coisa e ser mal interpretada. A impressão de que estava enlouquecendo porque era incapaz de enxergar o que ele dizia.

De todos os sentimentos que brotaram do e-mail, o mais forte foi a raiva. Ele sempre seria o calo? Aquele que se abre de repente, quando a sandália bate naquele exato ponto? Aquele dente que sempre sangra quando o fio dental passa por ele? A unha encravada? Aquilo que sempre está prestes a ferir?

Às 9 em ponto toca o telefone. Ela esperou alguns toques, fez ‘rum-rum’ e juntou forças para que a voz não falhasse.

- Alô.
- Oi. Sou eu. Tudo bem?
- Tá sim. Você?
- Também.
- ....................................
- ....................................
-... então. O que você precisa falar?
- Desculpa. É isso. Desculpa.

Era isso. A peça que faltava. O que fazia o dente sangrar, o calo arrebentar. Sentiu uma descompressão no peito, o ar entrando com mais força em seus pulmões. Quanto tempo ela sonhou com isso? Ele aberto, calmo, sóbrio e sem medo de sentir-se rebaixado por admitir que errou. Sem berros, explicações, acusações.

Esperou tanto por isso que nem sabia mais a razão. Na época, queria que ele voltasse com o orgulho atravessado na garganta, admitindo nunca ter se esforçado o suficiente, dizendo que ela merecia mais. Mas agora, via que não havia nada a ser feito. E se consolou sabendo que assim como ela, ele ainda tentava sair debaixo dos destroços daquele casamento.

- Desculpa também.

O telefonema seguiu sem que trocassem uma só palavra. E nunca se entenderam tão bem quanto nesses 34 minutos. '


( Retirado do blog: 'redatoras de merda')

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