Pedaços Humanos

sábado, 1 de maio de 2010

Grisalho

'- Você precisa arrumar um grisalho.

Já tinha na ponta da língua uma solução para a filha. Toda reclamação feita em relação ao namorado era prontamente devolvida com a história do grisalho. Mas a menina não dava ouvidos. Resmungava diante da resposta materna e dava as costas falando coisas incompreensíveis.
O filme era o mesmo. Todo dia, voltava do escritório com cara de enterro. A mãe a procurava e ela desabafava as mesmas palavras. Não importava a situação, algumas frases eram de praxe. "Ele é um egoísta", "é um grosso", "não me ama como eu o amo".
A mãe se sentava e escutava tudo pacientemente. Quando era enfim consultada, sempre respondia
- Você precisa arrumar um grisalho.
O conselho nunca ajudava em nada a moça, completamente apaixonada pelo seu castanho.

Um dia bate à porta o novo síndico do prédio. Senhor simpático, educado. Queria dizer aos moradores que estava à disposição para qualquer problema. Foi recebido com café fresquinho e biscoitos caseiros pela mãe. A conversa tranqüila foi interrompida pela porta batendo com força.
A senhora pediu licença ao síndico e foi ao encontro da filha, já jogada na cama, chorando tanto que o corpo inteiro balançava.
- Minha filha, o senhor síndico está aqui. Tente se controlar.
- O que é isso perto da minha desgraça, mamãe? Rubens tem outra.
- Graças a deus, disse a mãe baixinho, com o rosto virado para o céu, agradecendo pela dádiva.
- Te trago um chá em instantes. Direi ao senhor que você não está bem e pedirei pra voltar depois.
- Mamãe, gritou ela quando a mãe já saía do quarto.
- Sim?
- Ele é grisalho?
- Um pouco mais, filha, um pouco mais que isso.
- Então quero conhecê-lo.

Correu ao banheiro e limpou as lágrimas sujas de lápis preto para os olhos, prendeu os cabelos em um coque alto e passou pó para esconder o nariz vermelho.
Entrou pela sala como uma noiva entra na igreja. Cheia de si, decidida a mudar a vida completamente. Foi simpática, educada e sedutora de uma forma tão discreta e graciosa que era quase obscena. Não agüentava mais cometer os mesmos erros. Ia ouvir sua mãe. Arrumaria um grisalho. E se havia um em sua sala, seria ele.
O senhor síndico, em sua viuvez precoce, não resistiu. Café fresco, biscoitos caseiros e uma moça tão rara era tudo que ele precisava.

Em um ano, ela já morava um andar abaixo da mãe. Era a primeira dama do condomínio. A vida corria bem e tranquilamente. Suas vontades eram sempre atendidas. Ele, vez ou outra, ainda fazia certas recusas, para manter o charme. Ela percebia e achava uma graça enorme. Em vez de lágrimas, ela voltava do escritório feliz, disposta a ir ao cinema, jantar fora ou fazer novas receitas de biscoitos com a mãe.

Um dia, a mãe ouve a porta se abrindo repentinamente e passos pesados invadindo o corredor. A filha rumou para o quarto e, depois de anos, chorou com o corpo todo novamente. Não conseguia falar nada. Mantinha o punho cerrado, como se fosse socar alguém. As veias das mãos saltavam.
- O que é, querida?
- Aconteceu mamãe, aconteceu.
A mãe já aflita pensou em tudo. Gravidez, morte, traição, demissão. Mas quando a filha se virou, viu entre lágrimas um certo sorriso. Um choro emocionado.
- Fale logo que eu não tenho mais idade pra esses sustos, minha filha.
- Esperei tanto, mamãe, tanto. Olhe.
Ela abriu as mãos e aparentemente não havia nada ali. A mãe se aproximou para tentar enxergar melhor.
- Olhe bem, olhe de perto.
A mãe se aproximou e viu ali, único e solitário, um frio branco pousado na palma da mão.
- O Rubens, mamãe, o Rubens está ficando grisalho. Está pronto pra mim agora, mamãe.
Não havia palavra que coubesse naquele momento, tamanha a surpresa da mãe diante da filha.
O choro então virou apenas uma grande risada alta e descontrolada.'


(Retirado do blog 'redatoras de merda')

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