Pedaços Humanos

sexta-feira, 30 de março de 2012

Me dá 5 min?

"Hey você, senta aqui... precisamos conversar.

Eu sou exagerada, sabe? O que o tamanho não me agraciou, o exagero se esbaldou.

Tenho mesmo ainda a mania de me atirar nas coisas e o impulso ainda me controla muitas das vezes. Sou ansiosa, hiperativa e sim, eu crio expectativas. Sei lá porque. Talvez o sistema em que eu tenha sido criada tenha sido um pouco diferente, onde geralmente se você está na mesma estrada, era normal e comum quem estava do seu lado dividir a água quando o sol se tornava escaldante demais. É, amigo. Eu sou assim. Eu crio expectativas. Não vou te listar todos os defeitos porque tenho uma auto-estima pra cuidar, mas eu queria te dizer algumas coisas.

Eu tenho pena da nossa geração, sabe? Uma geração cheia de grandes corajosos, que falam o que pensam e nunca o que sentem, quando e se é que sentem. É todo mundo tão armado. Sempre com 5 pedras na mão prontas para atirar caso seja preciso. Uma guerra fria discreta e constante.

Amizades? Ah, mudaram tanto a definição dessa palavra que hoje em dia nem sei descrevê-la com precisão.Somos corajosos e medrosos. Levantamos muros e não permitimos que ultrapassem nossa linha de proteção.Matamos, dia após dia, nossos sonhos, nossas ilusões necessárias para que a força pra lutar por algo bom e que realmente gostemos, aconteça. Ainda bem, porque sonhar demais é tão nocivo quanto não ter sonho algum.

Mas, sabe, seu moço... eu quero te contar que eu ainda quero acreditar. Acreditar em uma sociedade onde as pessoas se deem mais as mãos que murros. Numa relação feita de um fazendo banquinho para o outro transpor os muros. É um defeito grande, eu sei. Mas é quase mais forte que eu.Eu sei que políticos corruptos jamais deixarão de existir e que a maldade também não, mas aquele ditado "O mundo muda quando a gente muda" não me sai da cabeça.

Então, moço quero te contar que no meu mundo a gente pode conversar e rir sinceramente. Pode me falar da sua vida e dos seus problemas. Pode se indignar pela alta dos impostos, pela teia de corrupção do Cachoeira e por tantas outras coisas que você quiser. Até pela maconha não ser liberada até hoje. Não te garanto concordar com tudo, mas garanto respeito com cada uma das suas inquietações.

Eu sei que não existe problema grande ou pequeno. Existe problema grande na proporção à vida de cada um. Aqui, amigo, você vai poder me cumprimentar amanhã caso nos encontremos depois de uma noite de risadas. Eu vou te dar um sorriso de "oi" de volta. Aqui, amigo, vai haver sempre uma meio intensa, meio louca, meio santa, instável, estável, feliz, infeliz de ouvido e coração aberto pra te ouvir quando sentir que da sua boca parte palavras sinceras, ainda que ásperas.

Então, seu moço, não me iniba. Não mate o resto de fé que há em mim no ser humano. Não me deixa vê-lo recuar quando alguém em você chegar sendo sincero a valer. Não seja você o portador do mal da censura do eu único que há em cada um, inclusive em mim.Agora, se você quiser ficar... saiba que há alguém aqui disposta a ser feliz. Eu quero me permitir, se você também quiser, está convidado... pode ficar por aqui."

(Camila Lourenço)

O que faz uma mulher se apaixonar?

Não. Não é aquele elogio caprichado que você dará ao vê-la. Muito menos o fato de você abrir a porta do carro para que ela entre, ou puxar a cadeira para ela se sentar. Tá, você terá êxito em tudo isso. Vai deixar uma boa impressão e com um pouco mais de investimento, dependendo da garota, vai conseguir levá-la pra cama. Se é só esse seu objetivo, pode parar de ler por aqui. Agora, se o seu interesse é saber o que faz as mulheres se apaixonarem, meu bem, vou te contar a fórmula e você rirá do quanto é simples: "Ser sincero". Isso, simples assim, seja sincero, conte-nos seus defeitos sórdidos e nos permita saber quem são de fato, vocês.
O cara chega com aquela cara toda de humano, de gente que erra como a gente, e numa conversa solta sem querer e envergonhadamente seus defeitos, pronto, meio caminho andando pra fazer a interlocutora pender pra paixão. Claro que também não é dizer os defeitos e achar que tem o aval de sair cometendo todos os desatinos possíveis depois e ainda achar que ela cairá a seus pés, e óbvio que tudo isso vem também com um conjunto de coisas, e a boa convivência é uma delas. Por exemplo, se você é um bruto grosseirão não é admitindo que irá conquistar alguém, será mudando mesmo.
Eu me lembro do dia em que disse pro melhor cara que conheci até hoje que ele era isso "o melhor cara que tinha conhecido na vida até aquele momento". Ele engoliu em seco e respondeu "Menos, menos, beeeeem menos... Sou péssimo, cheio de defeitos, egoísta, melancólico e mais um monte de coisa terrível.*" e eu tive mais certeza ainda, ele era mesmo.
Mulher tem um gosto estranho, é estranha. A gente gosta de gente como a gente, que tem medo também mas que sabe escondê-lo muito bem atrás de um bom sorriso de canto de boca.
Nada de promessas e jóias caras. Nada de buquês. Claro que tudo isso ajuda, mas não é isso que fará alguém amar você até o fim e morrer, se preciso for, um dia por você. É você, do jeito que é.
A gente sabe que hora ou outra vocês irão chegar mais tarde, vão passar no bar com os amigos, vão nos trocar por uma tarde de futebol e vão nos obrigar a engolir muitos amigos chatos, mas, é por serem vocês, por terem nos mostrado vocês, por terem ousado tirar a casca e dizer "esse aqui é o que realmente sou" que fará com que amemos vocês apesar de tantos "apesar de..."
Então, vamos fazer um trato? Nada de ficar contando vantagem do que você tem ou do quanto ganha ou do quanto você é o cara. Homens vivem reclamando que quem gosta de homem é viado, porque mulher gosta é de dinheiro. Talvez vocês estejam jogando o foco de luz nos motivos errados para serem aceitos e quem sabe até, amados.
Nem que seja um affair de uma noite só, se permita ser você e se surpreenda com o que acontece. Quem fica apesar e pelo que você é, meu amigo, muito provavelmente ficará para sempre, de um jeito ou de outro.


Camila Lourenço

quarta-feira, 7 de março de 2012

Quem realmente permanece

Eu gosto de quem facilita as coisas. De quem aponta caminhos ao invés de propor emboscadas. Eu sou feliz ao lado de pessoas que vivem sem códigos, que estão disponíveis sem exigir que você decifre nada. O que me faz feliz é leve e, mesmo que o tempo leve, continua dentro de mim.
Eu quero andar de mãos dadas com quem sabe que entrelaçar os dedos é mais do que um simples ato que mantém mãos unidas. É uma forma de trocar energia, de dizer: você não se enganou, eu estou aqui. Porque por mais que os obstáculos nos desafiem o que realmente permanece, costuma vir de quem não tem medo de ficar. "

Fernanda Gaona

Inteiro

Eu sou da teoria que precisamos de alguém que já venha inteiro. Porque a pessoa que vem inteira sabe respeitar espaços, a pessoa que se sente completa aceita que você não é igual, e principalmente, a pessoa que aprendeu a totalidade sozinha sabe que dividir algo com você não implica em nenhuma perda para ela.

Fernanda Gaona

Sentimentalmente ativo

Na era da geração auto-suficiente ser sentimentalmente ativo é um privilégio. Na geração em que a aparência vale mais que mil palavras, colocar o coração pra funcionar é quase artigo raro. Ponto para aqueles que “sobreviveram” as atitudes egoístas e que não se venderam a nenhum ato mesquinho. Sorte de quem enche a boca pra dizer o que sente e acende os olhos pra comprovar que é verdade. Graças a esse seleto grupo sentimentalmente ativo, o amor ainda resiste e é praticado em todos os gêneros e de todas as formas. Porque a boa vontade das pessoas até pode ficar inativa, mas aqui, o altruísmo é quem vai comandar.


Fernanda Gaona

quinta-feira, 1 de março de 2012

Meus livros

Cheguei a conclusão de que, para nos entendermos e, quem sabe, entender o que se passou com o que tínhamos juntos, basta olhar para como agimos com nossos livros. Você enrola a mesma leitura há mais de seis meses. Começou a ler porque me viu devorar o livro e amar cada página e resolveu que seria bom pra você amar a m...esma coisa que eu. Resolveu esquecer os livros que estavam te esperando ansiosamente na estante e ler primeiro o que você pensou que deveria gostar. Enquanto isso, eu ganhei de você apenas livros que eu já planejava porque você sabia que isso me valia mais do que qualquer outro presente. Nenhuma novidade, opinião formada e, mesmo assim, muita vontade de mergulhar em todos eles ao mesmo tempo, decorar as melhores partes de cada um e dobrar a pontinha das folhas que eu não queria esquecer nunca mais. Com a gente foi a mesma coisa. Você enrolou, horas esquecia o livro na mochila, horas em cima da cômoda. Cômodo. Você não leu nem os livros que queria e nem terminou a leitura que começou pra me agradar. E eu, amando tudo o que vinha de ti, sem perder a minha essência, fui lendo tudo ao mesmo tempo, sublinhando as melhores partes, escrevendo em um papel os parágrafos mais bonitos para depois poder te mostrar e saber se você concordaria. Hoje eu preferia que você odiasse meus livros, mas me contasse quais são seus autores favoritos, quais os títulos que sempre te chamaram atenção. Eu preferia a verdade, mesmo que fosse pra você me dizer que odeia ler porque acha uma perda de tempo e prefere fazer outras coisas. Ou você poderia simplesmente não feito nada, podia ter deixado o dito pelo não dito; o lido pelo não lido; o sinto pelo não ligo. Mas você não leu nem o primeiro livro. Não leu e não me devolveu. Um dos meus livros preferidos continua esquecido em algum canto da sua casa. Você deixou o tempo passar.

Tayna Saes

Mas, conhecer você foi bom...

"Mas, conhecer você melhor foi bom.. Bom como ler uma letra bonita sem poder escutar a incrível música por trás dela. Como planejar um final de semana na praia e ter dois pneus furados no meio da estrada. Descobrir uma ruazinha bonita no seu bairro e ser estuprado nela. Você é a chuva no meu piquenique. Você é o show ...que não consigo ver porque sou muito baixo. Você é a deliciosa torta de chocolate e limão que para comer eu preciso estar presente no aniversário de 70 anos da minha tia.Você é minha pipa enrolada nos fios de alta-tensão. Você é meu peixe novo que morreu na primeira semana. Você é como uma baleia em extinção querendo viver na minha piscina de mil litros. É como se eu finalmente aprendesse a voar e você fosse a Kriptonita. Eu sou o país independente que você não deixa em paz... Você é o braço que eu quebrei tentando catar as goiabas do vô. Você é o Barcelona vs Real Madrid que não passa na minha tevê.. É como criar coragem pra subir no palco cantar uma música pra você e lá de cima enxergar você no guichê, pagando pra ir embora."

Tayná Saes

Desistência?

"Não recrimino quando uma amiga me diz que largará o marido ou o namorado, que ele tem feito somente mal, que não suporta seu egoísmo e seu descaso, e na semana seguinte faz as pazes com ele e todos os meus conselhos são virados de lado como rascunho para anotar telefone. Não recrimino nada quando é amor.
Não recrimino porque entendo que ao lamentar "tudo está terminado!", ela está somente começando a terminar. Nem de longe é uma conclusão, talvez seja uma descrença.
Não recrimino quando ela me observa com compaixão e confessa que teve uma recaída com ele, que não foi tão bom assim, quando sei que foi o suficiente para ela deixar - durante um mês - mais um botão aberto de sua blusa.
Não recrimino suas reincidências - o corpo tem lembranças próprias.
Não recrimino quando ela chega aos lugares que freqüentava com ele e jura que o esqueceu. Jura que foi lá se divertir com os amigos, mas escolhe a mesa de frente à porta, para imaginá-lo entrando com alguma roupa que ela deu de presente.
Não recrimino quando declara que ele é passado quando não vê futuro.
Não recrimino quando ela escolhe a lingerie, se prepara no salão, fica ainda mais bonita, para despistar o abrigo que veste por dentro.
Não recrimino sua alternância entre a depressão e a euforia, a fragilidade de sua opinião. Não significa que não cumpriu as promessas. As promessas mudam.
Não recrimino quando ela é seca nas mensagens, mas demora imensamente entre uma letra e outra.
Não recrimino sua compulsão em contar a mesma história do início do relacionamento, de fazer as mesmas perguntas para ter as mesmas respostas, de me usar para não sentir tão sozinha em sua solidão.
Não recrimino porque já fui separado, já fui solteiro, já fui casado, já fui o que não quis ser, já doeu uma alegria, já gargalhei uma dor.
Não recrimino quando uma mulher se aproxima dos amigos do ex, somente para continuar falando dele. Não vou arrancar dela a necessidade de reconstituir o seu cheiro.
Não recrimino a loucura de esperar uma ligação e culpar os que ligam pelo simples fato de não serem ele e ainda ocupar a linha.
Não recrimino o choro, o chocolate, a falta de vontade, as palavras que não se formam a tempo de virar palavras.
Não recrimino. Sei que desistir é ainda aguardar, que separar-se não é abandonar quem amamos."


Fabrício Carpinejar

Execução sumária

"Você não a ama. Mas ela o ama.

Ela vai acusá-lo com ou sem motivo, você passará os restos dos dias se defendendo.

Amar é um indiciamento. Você se torna suspeito por toda a vida. Suspeito por não ter dado amor quando estava recebendo. Suspeito por negar sua aproximação. Suspeito por assassinar um amor quando ele estava se formando. Suspeito por não ter sequer tentado.
Você pode humilhar a mulher que o ama. Pode desaforá-la publicamente, encontrar as coisas mais indelicadas para dizer aos seus ouvidos, pode inventar desculpas que não coincidem os dados. Ela confundirá sua resistência com medo. Ela não compreenderá que você não o quer, nenhuma mulher compreende, nem no inferno, nem no apocalipse.
Ela dobrará seus esforços para convencê-lo. Ficará ainda mais encantada com a dificuldade.
Deseja seduzir uma mulher? Negue-a. Constranja-a.
Você pode zombar dela, rir dela, utilizar o escárnio. Ela ainda se manterá inabalável pelo amor. Mandará recados, ligará ao celular, enviará flores, como se nada de ruim tivesse acontecido. Você odeia submissão, mas ela não está mais pensando se está certo ou errado, está o processando de amor.
Quem ama não repara o jeito que ama. Não se conscientizará que é uma chata, uma filhodaputa, uma suicida, uma inconveniente. O amor a torna nobre. Ela se vê uma aristocrata do amor, porque acredita que o amor redime os erros e os exageros, que o amor justifica o ímpeto e a indignação, que o amor lava as escadarias do passado.
Você poderá avisá-la que não terá chances, que não adianta insistir, que não suporta imaginá-la junto de seu corpo. Ela fechará os ouvidos. Em todos os porres, lembrará de seu nome, irá até sua casa silenciosamente fazer sentinela. Com uma mulher apaixonada perto de você, não precisa de zelador, de guarda de rua, de guarda-chuva. Ela estará contando seus passos. É seu leão-de-chácara de graça.
Você poderá mudar de estratégia, não revidar com violência suas investidas. Com calma e senso, mostrará uma série de razões para se afastar. Ela entenderá de modo distorcido, que está aceitando finalmente o amor. Colocará palavras em sua boca já que não consegue sua boca. Você declara que deseja a amizade. Ela responde que já é um começo. Armado ou indefeso, qualquer atitude não surtirá efeito, ela não aceita ser recusada.

O amor condena."

Não quero mais sua desculpa

"O pior orgulhoso não é o que não deseja pedir desculpa.

É o que exige desculpa.

Eu peço desculpas com facilidade, aliás, antecipo desculpas do que ainda não fiz. Posso me desculpar pelos outros, para não perder o hábito. Choro os enfermos para não chorar os mortos.
Por me ver em excesso, nunca compreendi minha mulher. Assim, definitivo: nunca. Quando ela erra, eu a cobro com uma criança pela palavra mágica. Deixo de ser o marido para me tornar um pai, indeciso com qual castigo tomar. Um pai que educa pela severidade e esquece que erra tanto quanto, que não está um passo acima e nem um degrau abaixo.
Nas brigas intermináveis, diante do suicídio dos copos de geléia, ela chora, esperneia, grita, sacode os cílios das onze-horas na janela, e não a consolo para esperar ouvir sua desculpa. Mostro-me frio e indiferente. Maldita obrigação de se desculpar. Uma maldade ambiciosa de ver quem você ama sofrer e se ajoelhar com os dentes.
Nem é o "desculpe, errei", eu pretendo ouvir o "desculpa, está certo". Nada mudará com essa ignição verbal. O carro não partirá.
Eu a forço a se desculpar e dizer que não mais fará. Porém, sei que ela fará. Ela pede desculpas somente para sair daquele elevador claustrofóbico da linguagem, não por acreditar naquilo que falou. Eu a ameaço quando poderia estar a convidando a se abrir. Ela se fecha pois não demonstro vontade de entender seu temperamento, feito mais de atitudes do que de conclusões.
Ninguém se sentirá bem e aliviado após a súplica. Ambos estão derrotados. Eu porque coagi, ela por responder coagida. Alguma coisa será enterrada, mas não deixará de existir para as mãos.
Pedir desculpa não anula a vontade, talvez aumente. Ao completar a catequese, ia ao confessionário arrependido de todas as masturbações da semana. Aliviado da catarse por uma seqüência rápida de pai-nosso e ave-maria, repetia exatamente os pecados logo que saía da igreja. Pressionar desculpa é uma covardia, um ato violento de humilhação. É cobrar imposto da tristeza. É retirar o riso, as falhas, as indefinições e as aberturas do caráter. É rebaixar você e ela a indigentes do amor.
Não interessa que ela tenha concordado comigo, que esteja a fim de uma conversa franca, que já tenha retirada a defesa. Não canso de brigar até que ela se dê por vencida. Eu quero a desculpa, não a sua compreensão. Eu imponho a desculpa, quando a desculpa é apenas um cumprimento como o bom-dia ou o boa-noite.
A intolerância vem de mim, que não entende que a desculpa pode ser uma mudança tênue de comportamento, um abraço amansado com o rosto no ombro, um beijo trêmulo, a troca de assunto.
A desculpa não resolve, não remove a lembrança, não elimina a ansiedade. É o ponto final de uma frase, não do livro.
Há o crime de reduzir a consciência a uma expressão. Será que eu quero o seu melhor ou não ser ameaçado pela falta de palavras?
Não pedirei desculpa a ela. Para finalmente me perdoar."


Fabrício Carpinejar

Não canse quem te quer bem

"Não canse quem te quer bem" "Foi durante o programa "Saia Justa" que a atriz Camila Morgado, discutindo sobre a chatice dos outros (e a nossa própria), lançou a frase: - Não canse quem te quer bem Diz ela que ouviu isso em algum lugar, mas enquanto não consegue lembrar a fonte, dou a ela a posse provisória desse achado. Não canse quem te quer bem. Ah, se conseguíssemos manter sob controle nosso ímpeto de apoquentar. Mas não. Uns mais, outros menos, todos passam do limite na arte de encher os tubos. Ou contando uma história que não acaba nunca, ou pior: contando uma história que não acaba nunca cujos os protagonistas ninguém jamais ouviu falar. Deveria ser crime inafiançável ficar contando longos casos sobre gente que não conhecemos e por quem não temos o menor interesse. Se for história de doença, então, cadeira elétrica. Não canse quem te quer bem. Evite repetir sempre a mesma queixa. Desabafar com amigos, o.k. Pedir conselho, o.k também, é uma demonstração de carinho e confiança. Agora, ficar anos alugando os ouvidos alheios com as mesmas reclamações, dá licença. Troque o disco. Seus amigos gostam tanto de você, merecem saber que você é capaz de diversificar suas lamúrias. Não canse quem te quer bem. Garçons foram treinados para te querer bem. Então não peça para trocar todos os ingredientes do risoto que você solicitou - escolha uma pizza e fim. Seu namorado te quer muito bem. Não o obrigue a esperar pelos 20 vestidos que você vai experimentar antes de sair - pense antes no que vai usar. E discutir a relação, só uma vez por ano, se não houver outra saída. Sua namorada também te quer muito bem. Não a amole pedindo para ela explicar de onde conhece aquele rapaz que cumprimentou na saída do cinema. Ciúmes toda hora, por qualquer bobagem, é esgotante. Não canse quem te quer bem. Não peça dinheiro emprestado para quem vai constrangido em negar. Não exija uma dedicatória especial só porque você é parente do autor do livro. E não exagere ao mostrar fotografias. Se o lugar que você visitou é realmente incrível, mostre três, quatro no máximo. Na verdade, fotografia a gente só mostra para mãe e para aqueles que também aparecem na foto. Não canse quem te quer bem. Não faça seus filhos demonstrarem dotes artísticos (cantar, dançar, tocar violão) na frente das visitas. Por amor a eles e pelas visitas. Implicância quase sempre são demonstrações de afeto. Você não implica com quem te esnoba, apenas com quem tem laços fraternos. Se um amigo é barrigudo, será sobre a barriga dele que faremos piada. Se temos uma amiga que sempre chega atrasada, o atraso dela será brindado com sarcasmo. Se nosso filho é cabeludo, "quando é que tu vai cortar esse cabelo, garoto?" será a pergunta que faremos de segunda a domingo. Implicar é uma maneira de confirmar a intimidade. Mas os íntimos poderiam se elogiar, para variar. Não canse quem te quer bem. Se não consegue resistir a dar uma chateada, seja mala com pessoas que não te conhecem. Só esses poderão se afastar, cortar o assunto, te dar um chega pra lá. Quem te quer bem vai te ouvir até o fim e ainda vai fazer de conta que está se divertindo. Coitado. Prive-o desse infortúnio. Ele não tem culpa de gostar de você."

Aqui, agora, de todo o coração

"Escolher é difícil. Pergunte a um psicólogo e ele vai explicar por que gente obrigada a optar entre uma coisa e outra – qualquer que sejam essas coisas – sente ansiedade. Isso acontece em lojas de sapato, em restaurantes, na porta do cinema e até no sexo. Uma amiga me contou outro dia como foi estar numa festa e ter dois homens sedutores dando em cima dela. “Tive de escolher um deles, mas com um aperto no coração”, ela me disse. No dia seguinte, o bonitão que ela escolheu caiu no vácuo e nunca mais deu notícias. Escolher, ela aprendeu, é abrir mão de alguma outra coisa - e as consequências podem ser irreversíveis.

Infelizmente para nós, nem todas as escolhas são tão simples quanto a do sexo na balada. Penso na escolha mais delicada que a gente faz na vida, aquela que envolve os parceiros de longo prazo. Em que momento concluímos que uma pessoa deixou de ser apenas item de prazer ou fonte de encantamento e se tornou a criatura com quem vamos dividir a vida? Pode ser casando, comprando apartamento e tendo filhos, ou, de forma menos ritualizada, pondo os sentimentos e necessidades dela no centro da nossa vida, mesmo vivendo em casas separadas. O compromisso é parecido, assim como os caminhos que levam a ele.

A primeira coisa que conta nas grandes escolhas – eu acho - é a permanência. Ninguém tem direito a reivindicar um posto dessa importância sem ter ralado um tanto. Não adianta a Fulana decidir, em 30 dias, que vai ser sua mulher para o resto da sua vida. Não funciona assim. O teste do tempo é fundamental. Se aquela mulher ou aquele sujeito continua lá depois de todas as discussões e inevitáveis desencontros, se ela ou ele resolveu ficar depois de todas as chances de ir embora, se os seus sentimentos em relação a ele ou ela continuam vivos, um bom motivo há de haver.

É essencial, também, que a experiência de convívio seja boa. Amores tumultuados dão bons filmes e péssimas vidas. É essencial acordar no sábado e ter vontade de ficar mais tempo na cama, enrolado naquele ser ao seu lado. Se a conversa antes de dormir deixou de ser gostosa ou se qualquer programa parece mais interessante do que a companhia dela ou dele, para que insistir? O prazer que o outro proporciona é essencial. Prazer de transar, prazer de olhar, prazer de ouvir, prazer de simplesmente estar. Se você caminha pela rua com ela e os dois são capazes de rir um com o outro, algo vai bem. Se você passa a tarde com ele no sofá, lendo ou transando, e o dia parece perfeito, eis um bom sinal. A felicidade não tem receita, mas a gente percebe quando está funcionando.

Para que as coisas funcionem no longo prazo é essencial haver lealdade. Eu cuido, eu protejo, eu respeito – e você faz o mesmo comigo. Se você não sente que seus sentimentos e a sua vida são importantes para ele ou para ela, desista. Como o ambiente lá fora é hostil, é essencial saber que no interior da relação existe cumplicidade e abrigo, com um grau elevado de honestidade: você diz o que pensa e isso vai ajudar, ainda que doa. É impossível prometer que coisas ruins jamais irão acontecer, é falso garantir que os sentimentos permanecerão os mesmos para sempre, mas é essencial olhar nos olhos do outro e sentir a disposição de tentar, verdadeiramente, que seja assim. Aqui, agora, de todo o coração, tem de ser para sempre – ou então a gente nem começa.

Se tudo isso existir – e não é fácil – ainda fará falta um quarto elemento, essencial ao equilíbrio duradouro das relações: os planos. Se ele que ter cinco filhos e você não quer ser mãe, não vai rolar. Se ela quer levar uma vida de viagens e aventura e o seu sonho é ficar aqui mesmo, perto das famílias e dos amigos, não deu. Viver bem pressupõe afinidades essenciais de gosto, sentimento e expectativas, sem falar de ideologia. Todas essas coisas se refletem nos planos. Eu penso no amor como um voo de longa distância. O avião precisa estar carregado com o tempo da relação, com o prazer que ela proporciona e com a lealdade em que ela está baseada – mas as pessoas ainda têm de concordar sobre o destino. Se eu quero ir à Tóquio e você à Nova York, precisamos embarcar em vôos diferentes."



(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

Quantas vezes eu assassinei o amor?

O amor nunca morre de morte natural. Anaïs Nïn estava certa.

Morre porque o matamos ou o deixamos morrer.

Morre envenenado pela angústia. Morre enforcado pelo abraço. Morre esfaqueado pelas costas. Morre eletrocutado pela sinceridade. Morre atropelado pela grosseria. Morre sufocado pela desavença.

Mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa de sétimo dia.

Mortes sem sangramento. Lavadas. Com os ossos e as lembranças deslocados.

O amor não morre de velhice, em paz com a cama e com a fortuna dos dedos.

Morre com um beijo dado sem ênfase. Um dia morno. Uma indiferença. Uma conversa surda. Morre porque queremos que morra. Decidimos que ele está morto. Facilitamos seu estremecimento.

O amor não poderia morrer, ele não tem fim. Nós que criamos a despedida por não suportar sua longevidade. Por invejar que ele seja maior do que a nossa vida.

O fim do amor não será suicídio. O amor é sempre homicídio. A boca estará estranhamente carregada.

Repassei os olhos pelos meus namoros e casamentos. Permiti que o amor morresse. Eu o vi indo para o mar de noite e não socorri. Eu vi que ele poderia escorregar dos andares da memória e não apressei o corrimão. Não avisei o amor no primeiro sinal de fraqueza. No primeiro acidente. Aceitei que desmoronasse, não levantei as ruínas sobre o passado. Fui orgulhoso e não me arrependi. Meu orgulho não salvou ninguém. O orgulho não salva, o orgulho coleciona mortos.

No mínimo, merecia ser incriminado por omissão.

Mas talvez eu tenha matado meus amores. Seja um serial killer. Perigoso, silencioso, como todos os amantes, com aparência inofensiva de balconista. Fiz da dor uma alegria quando não restava alegria.

Mato; não confesso e repito os rituais. Escondo o corpo dela em meu próprio corpo. Durmo suando frio e disfarço que foi um pesadelo. Desfaço as pistas e suspeitas assim que termino o relacionamento. Queimo o que fui. E recomeço, com a certeza de que não houve testemunhas.

Mato porque não tolero o contraponto. A divergência. Mato porque ela conheceu meu lado escuro e estou envergonhado. Mato e mudo de personalidade, ao invés de conviver com minhas personalidades inacabadas e falhas.

Mato porque aguardava o elogio e recebia de volta a verdade.

O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem recuar. O amor é a boca suja. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em segredo no quarto. O amor vai abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina em sua casa. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia rever.

O amor é sempre assassinado. Para confiarmos a nossa vida para outra pessoa, devemos saber o que fizemos antes com ela.


- Fabrício Carpinejar

Casado na festa de solteiro

"É fácil descasar.

Agora os casais se separam para depois discutir. Não mais discutem para se separar. Não desenvolvem a quebradeira emocional, o jogo de ameaças, as negativas falsas. Aquelas horas a fio de madrugada para desenterrar uma confidência. Não arranham os discos estacionando a agulha numa única faixa. Não provocam novos juramentos e lamentos desesperados de perdão. Surge uma infidelidade, uma frustração, a parte ofendida nem pede explicações: fecha a conta.

Abandona a casa e busca seus pertences na portaria na semana seguinte. O síndico é o padre das separações, vive consagrando divórcios. No altar, o sacerdote entrega alianças. Na portaria, o síndico entrega as chaves. O corvo não usa mais preto.

Segunda chance e repescagem são atitudes reacionárias. Moderno é virar a cara e partir para outra. Não importa se é verdade, impressões funcionam como fatos. Mesmo que sejam fatos, a vergonha de um engano supera o passado de acertos.

Sentenças como “pisou na bola” e “fez a maior mancada” bastam para explicar o sumiço. Poderá se arrepender e insistir que não terá resposta. Ninguém mais quer perder tempo com namoros. Reatar é um desperdício, é insistir no erro. Ou se acerta de primeira para sempre ou não existe reedição. Amor hoje só tem primeira impressão.

Eu percebi isso quando fui convidado para uma festa de solteiro. Esperava um trago interminável, uma loucura de som alto, os vizinhos chamando a polícia. Ansiava por uma noite animal, o apartamento abaixo como um zoológico. Seria uma data fadada ao esquecimento, para preservar os segredos. Imaginei que os padrinhos chamariam garotas de programa, que estariam nuas cobertas apenas por casacos de pele, imaginei que metade dos convidados entraria em coma alcoólico e a segunda metade dormiria no banheiro.

Mas não havia prostitutas, muito menos bagunça. Virou um churrasco de família, com pouquíssimas piadas e excessivo nervosismo. Desconfio que os presentes rezavam pelo término do encontro, antes que viesse uma surpresa desagradável e um imprevisto que despertasse os dilemas do corpo. Observavam o relógio da cozinha, apreensivos, com receio que alguém surtasse e abandonasse a sobriedade.

Incrivelmente o sogro participava do jantar. Como aprontar diabruras e taras contra a memória de sua filha? Ajudava a espetar a carne com o avental do seu time de coração. Só faltava a sogra trazer a salada.

Badalou meia-noite e o noivo ligou para a noiva para sair num bar. E os amigos dos noivos telefonaram para suas namoradas para ir junto. As mulheres pareciam que estavam de tocaia atrás da porta — chegaram tão rápido.

Foi um aquecimento para o romance, não um inferno a compensar o céu, não a desforra da cumplicidade, não a catarse final que antecipa o casamento.

Todos encontraram seus casacos na saída — antigamente ninguém achava suas meias.

Igual pasmaceira nos chás de panela. Até crianças são permitidas. Não enxergará provas sádicas entre as amigas, concursos de vexames, não se paga mais stripper para rebolar na mesa. Antes as madrinhas levavam vibradores, novidades eróticas, brincavam com os costumes, cuspiam caroços de azeitonas pelas janelas. É tudo comportado, adequado, adulto. Onde se colocou a diversão da véspera? As homenagens são escolhidas

com segurança, não se fala de antigos relacionamentos e de atrapalhadas na faculdade para não gerar indiscrições. Loucas e histéricas não são convidadas, logo elas, imprescindíveis, que inflamaram as festas como DJs das gafes.

Experimenta-se um pânico moralista, vá que ele ou ela descubra intimidades e mude de ideia. Os noivos sofrem o período de delação premiada. Não arriscam troça nenhuma, acovardados em suas fantasias.

Porque é muito, muito fácil descasar."

Fabrício Carpinejar

Despacho da esquina

"Conservo algumas pistas sobre a acidentada existência masculina. Pistas!, pois não tenho caminho, só o morto tem.

Antecipo uma delas. Na ausência de culpa, o homem reage mansamente quando sua mulher mexe no seu e-mail, no seu celular ou revista sua carteira. Não fará drama, não subirá no palanque para prometer pena de morte. Ficará ofendido, claro, mas não acabará com o relacionamento, muito menos despejará frases cortantes como “não dá mais”. Acompanhará o que ela tem a dizer e tratará de explicar ponto a ponto, redimindo enganos e distorções.
Marido inocente tem paciência. É incrível, sente-se feliz pela rara chance de exibir a ficha limpa e protagonizar merchandising da aliança. Desenvolverá uma generosidade imprevisível, vai dar colo ao choro e pedir que ela esqueça o desentendimento.
Ele é uma fera apenas quando sabe que tem alguma coisa de errado. Ao aprontar e fazer jogo duplo. Ao manter mensagens duvidosas e insinuações comprometedoras das outras. Não está magoado porque ela fuçou seus pertences (já perdoou a mãe por procurar toco de maconha em suas roupas), mas porque é bem provável que ela encontrou uma prova.
O pânico é a manifestação do crime. Tentará reverter sua posição defensiva em alucinado ataque, encenará a sina de vítima, com a ladainha de que viver assim é doentio ou de que amor nada é longe da confiança.
Quem não deve não teme e paga antecipado. Homem culpado é mais afetado do que mulher histérica. Uma ópera de leques e bufos. Negará antes mesmo de ouvir tudo. Ameaçará antes mesmo de sustentar o contraditório.
O infiel também experimenta uma TPM. Já entra em crise perto da data de receber a fatura do cartão de crédito e da conta do celular. Muda a respiração com o barulho do torpedo. Sofre muito antes de tudo eclodir, cheira a comida com medo de se entregar diante de silêncios demorados. Exagera nos modos e nas portas batendo. Não quer conversar, quer sair logo de perto. De tanto adiantar explicações desde que acorda, sofre de um cansaço mental. É a primeira vez que ela toca no assunto, porém é a centésima que ele pensa.
Homem que traiu age como se ele fosse o corno. Troca os papéis. Como está enganando em segredo, intui que será enganado sem perceber. Delira que ela é igualmente dissimulada. Por receio da vingança, toca o terror a cada questionamento. É a criatura mais possessiva que existe, conhece com domínio suas versões falsas e projeta na companhia as escapadas que vive criando.
Sujeito de consciência tranquila não se apavora com a crise, respeita os despachos da esquina. Pega emprestada uma vela para iluminar a próxima briga."


Fabrício Carpinejar

Você tem que me ler

"É antropológico: mulher odeia ser mandada. São séculos e séculos de opressão. Não dê corda, que já cheira a forca. Vale, inclusive, para a masoquista. Gosta de firmeza, não que alguém diga o que ela deve ou não fazer. Não seja autoritário. O feminismo não é conversa de sapatão.
Que aconselhe, não emplaque uma ordem. Que ofereça um palpite, este é despretensioso como um assobio, é soprar uma melodia e permitir espaço para que ela complete a letra. Finja que está no chuveiro – menor o risco de se afogar. Fale cantado. Quem canta nunca será um ditador.
Posso estar plenamente equivocado, sou tão bonito quanto carro de eletricista, mas mulher aprecia é sentir saudade. Quando o homem desaparece e ela corre para procurá-lo. São coisas do cotidiano. Fui percebendo que a conversa com a minha namorada estragava sempre do mesmo jeito. Havia um método no erro. Uma insistência de minha parte. Uma frase morse que truncava o entendimento. Depois que pronunciava aquilo, nada mais funcionava. Da calmaria, ela migrava para um estado nervoso e impaciente. A transformação de sua atitude me baqueava: O que foi? Será que perdi algo? Retrocedia para caçar uma gafe. Cansei até captar o sinal. O homem ainda tenta melhorar sua imagem com o bombril na antena.
Eu dizia “você tem que” a cada início de diálogo. Impositivo, não agia por mal, era um hábito, buscava convencer com “você tem que”. Parecia que tinha a solução dos problemas do mundo. Persuasão é a sedução para quem não tem paciência. Meu caso; não cuidava da linguagem e depois estranhava o silêncio dela. “Você tem que” é um mandado de segurança.
É atestar que ela não desfruta de condições de conduzir a própria vida. Virava um segundo pai, determinando suas atitudes. Fugia da cumplicidade, vinha com os mandamentos e as condicionais de comportamento para que merecesse a mesada.
O homem não botou na cabeça que a fragilidade da mulher não é dependência. Ela não precisa ser protegida, e sim respeitada. Existe uma diferença aguda no tratamento. Depois que ela fica braba não adianta remendar. Emerge um pânico das cavernas, o receio de ser puxada pelos cabelos e pelas palavras. Igual é chamá-la de louca no meio de uma discussão.
Quem não encheu o pulmão para desabafar “você está louca!”, com aquele grito catártico, que serve como elevador para todo o prédio? Eu confesso, mais de uma vez. É novamente afirmar que ela não tem domínio, que nem sabe o que está falando e menosprezar sua opinião. Pode até ser louca, mas não chame de louca, senão ela não vai recuperar o juízo. Na história do pensamento, quantas mulheres foram enviadas para o hospício devido a sua autonomia? Quantas receberam eletrochoque ou sofreram lobotomia em função da independência de estilo? Significa um joanete ancestral, um calo antiguíssimo, não pise.
Joana D’Arc não foi uma bruxa. Assim como vassoura não é para voar, é para varrer qualquer sujeira machista dentro de casa."

Fabrício Carpinejar

Outro lugar

'São duas horas discutindo sobre um amor do qual não quero mais fazer parte. Suas palavras, mesmo em alto e bom português, parecem não mais falar minha língua. Eu poderia muito bem gritar igualmente, se você não estivesse tão cega. Tenho um segredo pra lhe contar: seus heróis também tem defeitos, todos eles escondidos atrás do sorriso no comercial de teve a cabo.
O ferimento em si nem dói tanto quanto ver sua intenção em me ferir. Palavras tão pequenas de quem parece não ter mais nada a perder, somente um fadário de coisas a dizer, sempre antes de pensar.
Percebo que não importa mais onde eu esteja, preso num quartinho sem ideias ou caminhando livre na chuva, já não adianta sonhar, se em todo amanhecer preciso olhar no espelho e dizer para mim mesmo que aqui é o lugar.
Todos os seus gritos me deixam com a impressão de que estou sempre atrasado, ou pior, que já estive por aqui por tempo demais. Fico rouco diante de perdões formais, que dirá quando a solidão se manifesta tão necessária.
A partir de hoje, só o que for muito, muito leve, bonito e fácil. A grande maioria desiste. Eu, só estou abrindo mão. Concordo contigo, também aconteceu comigo: o meu coração partiu. Para outro lugar.'

Gabito Nunes

Por que tu não tem namorado?

"Perguntaram pra mim: "Por que eu não tenho namorado? Algo em mim repele os homens? Sou uma mulher embargada? Há uma placa de 'proibido estacionar' em minhas costas? Me diga!". Olha, eu não sei por que não tem namorado. Honestamente.

Poxa, come batata frita, torta de limão, churrasco e trufa de leite condensado. Ok, a alcunha de magricela, cabo de vassoura ou Olívia Palito nunca lhe serviram, talvez. Urros sobre sua suposta suculência não têm advindo de prédios em construção, quiçá. Quem sabe não fica bem de "tomara-que-caia", tropica no salto agulha, não combina numa minissaia. Mas desbanca a miss Venezuela num vestido primaveril, pisando numa rasteirinha prateada, com o cabelo preso naquele lápis cor-de-rosa, soprando a franja pra cima no calor. Não vai me acreditar, mas tu é bonita.

Tu passa longe de uma Fernanda Young, uma Lya Luft, uma Sandra Werneck. Mas tu é inteligente à sua maneira. Assiste novela, mas não comenta a vida dos personagens. Gosta da Clarice, da Cecília, da Martha. Curte o Tom, a Adriana, o Nando, a Zizi, o Cazuza. Trabalha, suspira, trabalha, checa as unhas, trabalha, sonha, trabalha, belisca uma água-e-sal, trabalha e um colega te olha. E te acha bonita idem. E também se intriga com tua solteirice.

Tem princípios iguais os da mãe. Mas se acha careta, às vezes. Não cede, mesmo só. Adora sexo, embora não faça com a mesma frequência do desejo. Se faz não vibra na mesma frequência que o parceiro. Sente raiva por ser secretamente boba, romântica e demodê. Se derrete mais rápido que o sorvete napolitano na xícara de sopão quando a mocinha diz "você me fez acordar com um sorrisão no meu rosto". Chora na frente de ninguém, ai de ti se mais alguém souber. E você não vê a hora de um príncipe encantado por ti libertar esse riso largo atrofiado, mas sabidamente bonito.

Tem suas esquisitices. Dorme de edredon e ventilador. Coleciona esmaltes. Cerra as pernas quando sentada e fica coçando o joelho com uma das mãos enquanto a outra segura a cabeça pelo queixo. Ensaia dança do ventre pro espelho do banheiro. Faz duas vezes antes de pensar e tem uns "nhe-nhe-nhê" de mulherzinha. Mas qual não tem? É até bem charmoso. Nada tão relevante quanto sua forma meiga e carinhosa de perguntar "tu tá bem?". Nada mais importante que teu ímpeto de cuidar dos outros. Nada que mude minha convicção de que tu é bonita.

O que te falta? Falta tu mesma se convencer do que te falo com certeza. Tu merece alguém que abra os olhos diariamente e pense: "cara, eu tô com ela, eu sou o namorado dela!". Que goste da tua boca, do teu ombro, do teu cabelo bagunçado, do teu calcanhar, da tua cintura, das tuas mãos, do cheiro da tua pele, das sardas do teu rosto. E isso vai acontecer naturalmente ao você se dar conta de que tu é bonita, no âmago e na lata. Eu acho, teu ginecologista também, o colega de trabalho assina embaixo. Um dia serás o amor da vida de alguém, do jeitinho que tu é. Falta tu. Acorde hoje e repita: "eu sou bonita".

Gabito Nunes

Vai por mim

'Não, não fica bem aparecer por lá agora, ainda. Faz só uma semana. Ele vai estar naquela fase em que o canto dos pássaros na janela não lembra música, só ruídos verde-escuros. Ele está bem, evidente que está. Tem trinta e dois dentes, barba, um amigo que outro, discos do Nirvana, quem não estaria? Não, não, chorando já é pedir demais. Outra? Duvido muito. Os primeiros dias, vinte ou dez, a gente se dá conta de que não tem mais ninguém pra se arrumar, perfumar, ficar pronto. Ele deve estar com aquela calça cinza de algodão, caminhando de meias pela casa, apoiando a testa no vidro da janela, de vez em quando. Tomando coragem de olhar pra rua e o que vem por aí, depois de você.

Não, não telefona. Me espera chegar. Do mesmo, de nada vai adiantar. Ele está justamente esperando por isso, testando as possibilidades, do fixo pro móvel, e vice-versa, pra checar mesmo se ambos estão cumprindo seu papel. E tá tudo em cima, funcionando, não vá estragar todo o processo de cura, os primeiros dias são elementares. Telefonar de bobeira pra ficar em silêncio do outro lado do mundo, enquanto ele espera que você diga "estou-arrependida-posso-voltar?". Pra quê? Ele até já ensaiou o timbre pra dizer, como vai desdenhar um pouco de início, depois apresentar seu disfarce em condições infantis, aquele jeito frágil querendo parecer forte só pra mostrar que pode te proteger num anoitecer de segunda-feira.

Você não terminou porque precisava de mais atenção? Então, criatura. Agora é o que ele mais precisa, depois de ouvir "não-dá-mais-vamos-terminar-isso-antes-que-alguém-se-machuque-mais". A não ser que você queira parecer louca, aí guardo suas costas, vá em frente. Se ele for realmente o Grande Amor da Sua Vida? Não é, vai por mim, a gente sempre sabe. Não pense maluquices. Ainda é cedo. O tempo pra surgir um novo amor leva uma eternidade, não se engane. Agora serão apenas uns casinhos sem importância, ele vai cultivar dois ou três, todos com a cor de cabelos, a voz e o cheiro bem diferentes dos seus. E mesmo que alguém apareça, o alarme dele não vai soar.

Não, você não é insubstituível. Mas também, o que você queria? Uma espécie de hipoteca amorosa? Um estepe sentimental? Não é assim. Ele é bacana, vai encontrar outrem um dia, vai conquistá-la com o mesmo mel que grudou você, ninguém perde a manha. Um pouco de ciúme é natural, poxa vida, você é gente, isso é parte integrante. E, fatalmente, vão se cruzar por aí. São tantas as esquinas. Vocês vão beber um café quente juntos, falar amenidades, sobre novos cortes de cabelo, você está bonita, e você mais maduro, como está sua mãe e tudo mais. Nos momentos de silêncio, baixarão o queixo, com medo de amarrar olhares e, talvez, voltar tudo aquilo outra vez. Mas vai ser só isso. Se existem outros caras legais por aí? Claro que sim. Vai por mim.'

Gabito Nunes

Aumente sua delicadeza em até 28 cm

"Nunca vi uma mulher ou um homem gostar sem criticar.

O embaraço do sexo não decorre da ausência de intimidade, mas da intimidade. E da cobrança que vem com ela.

Mais fácil gozar com estranhos.

Depois de partilhar meses e cadernos de jornal com nosso par, abandonamos o elogio. Passamos a cobrar e expor defeitos para que sejam corrigidos.

É o cigarro, é a alimentação, é a distração, é o pouco caso com o dinheiro, é a indeterminação do trabalho, é a preguiça.

A convivência traz a preocupação com o namorado ou a namorada e uma esquisita vontade de interferir. Entre conhecer e mandar, é um passo. Ou um tropeço.

As mais duras agressões não provocam hematomas, ocorrem em nome da sinceridade.

O amor é confundido com pancadaria. Um teste de resistência. Uma prova de esgotamento nervoso. Se o outro não quer, que vá embora, que desista do prêmio maior que é a confiança.

Há uma visão sádica que não ajuda nem o masoquista. Falta medida. Falta parar e recomeçar o namoro. Falta esquecer e perceber que o próprio passado não é imutável, não existe certo ou errado, que nem tudo por isso é duvidoso.

A eficácia mata o erotismo. O aproveitamento total do tempo do relacionamento não colabora com a vaidade. Custa um agrado antes de transar? Uma meia-luz de palavras? Não estou pedindo para mentir, muito menos fingir, mas falar um pouco bem para acordar os ouvidos e despertar o interesse.

No início, os joelhos são venerados, os ombros recebem moldura de madeira, os cabelos são alisados com a decência de um espelho.

As expressões afetuosas vão e voltam, repetidas com diferentes timbres.

Todo homem no começo é, ao mesmo tempo, um tenor, um barítono e um baixo.

Toda mulher no começo é, ao mesmo tempo, uma soprano, uma mezzo e uma contralto.

Dependendo da região que toca, a voz muda.

Com a relação firmada, a excitação torna-se automática. O corpo tem que pegar no tranco.

A devassidão é trocada pela devassa terapêutica. Desculpa e por favor saem de moda. Como existe o trabalho, a casa, o dia seguinte e terminou a paixão (e somente os apaixonados são sobrenaturais e não sentem cansaço), o sexo pode ser mais prático, mais direto, pode até não ser.

Na cama, estaremos falando dos problemas, das contas, do que deve ser mudado na personalidade. Não encontraremos paciência diante do relógio. Não vamos procurar cheirar a pele para atrair o beijo.

Eu compreendo perfeitamente quando um homem broxa se a cada instante é lembrado de sua barriga.

Eu compreendo perfeitamente quando uma mulher decide dormir quando sua lingerie nova não foi reparada.

Nunca acusamos quem a gente não conhece.

Julgamos infelizmente quem vive nos absolvendo.”

- fabrício carpinejar.

Depois de tanto tempo

"O maior segredo do amor não é por que amamos, mas por que deixamos de amar.

Nem procure recapitular o que bebeu na noite anterior. Não tomou nada. É a ressaca da sobriedade. Um imperioso repuxo da boca.

A descoberta é sutil como perder um prendedor de cabelo. Quase insignificante como um enjoo, um cansaço. A consciência surgiu por acaso, sua origem não é bem certa, de repente na hora de escovar os dentes ou ao regar as plantas ou ao atender o interfone. Não tem lógica. Saímos do centro de gravidade que nos tornava absolutamente dependente dos gestos e das atitudes do outro. Estamos livres para pensar sozinhos e, ao mesmo tempo, presos para sempre na incompreensão.

O desamor é tão fulminante quanto a atração, mas com consequências embaraçosas. Como abandonar a militância, a ideologia, e não ser visto como um traidor? Como narrar o que não tem enredo e reunir sentido em frases soltas e ensimesmadas?
Qualquer um vai se envergonhar de contar, trata-se de um sopro, não mais de uma voz. Não é algo para perguntar, está resolvido, fertilizado de impressões.
Por que é duro sair de casa sem um motivo. Duro encarar quem amamos tanto tempo sem oferecer nenhuma explicação adequada e convincente para o fim. Duro conversar sem mesmo entender como ocorreu a passagem de lado, de uma fidelidade extrema e desesperada à indiferença. Duro executar a tarefa, sabendo que alguém aguarda ansiosamente uma palavra para desaguar os traços, uma palavra onde possa colocar a culpa e amaldiçoar nosso nome. Esse alguém precisa da palavra que não temos, como um pai ou uma mãe do corpo desaparecido do filho.
Vive-se a tragédia de não ter uma tragédia para desencadear a briga. Não haverá uma causa específica para a distância. Fugiremos do contato visual, por não corresponder mais às expectativas.
Receberemos a fama de mentiroso, de fraco, de que estamos escondendo a verdade. Muitos forçam uma causa, para descontar o preço da loucura. Muitos revisam os últimos movimentos para justificar o término. Muitos mentem para não passar trabalho. Muitos tentam diminuir a injustiça inventando fatos.
O que aumenta a penumbra é que incrivelmente nunca mais encontrarmos nosso par, apesar de viver na mesma cidade, frequentar o mesmo bairro, dividir gostos semelhantes. Nenhum esbarrão no mercado ou no banco. Os amigos em comum apagam as pistas. Não dá para compreender se mudamos os hábitos ou os hábitos não nos pertenciam mesmo e queríamos agradar pensando que eram nossos.
Minha namorada reviu seu ex num bar. Ele estava acuado com o imprevisto, cumprimentou nervoso ao invés de ajudar o rosto a sorrir. Ela foi ágil, venceu as cadeiras de ferro, as mesas truncadas, esforçou seu quadril para criar interesse e perguntou o que ele andava fazendo. Eu assisti ao enlace esperando o momento de ser apresentado.
Sondei o que passou pela cabeça de Cínthya: aquele rapaz simpático, de cabelos compridos e óculos ingênuos, foi um dia seu melhor, que ela também foi um dia o melhor dele. Ela tinha que mostrar ternura e não me ferir de ciúme. Ele tinha que apresentar confiança e não se abalar comigo.
A emoção ficou represada ou talvez já houvesse secado. A questão é que não se falavam durante cinco anos. Idealizaram um reencontro que não aconteceu. Não existe justiça depois da separação.'

Fabrício Carpinejar

Separação criativa

"Eu adoro a palavra. Sou fascinado pela palavra, não é nenhuma novidade isso.

Mas não coloco mais a palavra em primeiro lugar. Não sou mais coletor de ofensas.
Se meu filho explode e avisa que não me ama não irei castigá-lo ou obrigarei que ele desminta em minha frente. Não o puxarei pelos braços, não responderei para procurar um pai diferente, não subirei no púlpito e ordenarei maldições. Tem a liberdade para me odiar. Eu sei que ele me ama. Eu sei que ele me quer.

A sabedoria não está em evitar o sofrimento, e sim ao não fugir dele

Já observei casamentos desfeitos porque um falou para outro que acabou e não voltava mais. E nenhum dos dois cedeu e insistiu e perguntou de novo. Passaram a história inteira para provar o que ele ou ela desperdiçou e o dano irreparável de suas frases.

Enterremos logo nossas maldades para velar as injúrias. É só oferecer ao nosso par a mesma capacidade que temos de nos perdoar. Desapareceria metade dos problemas. Os inimigos são netos de nossas teimosias.

Castigamos com silêncio quem temos certeza que nos ama, torturamos com silêncio quem temos certeza que nos ama, somos indiferentes a quem temos certeza que nos ama. Por uma palavra dita na dificuldade absoluta de comunicação. Não vale o que foi vivido antes, será enviado um boleto bancário de um grito, de um palavrão, de uma observação injusta. A cobrança será eterna quando seu significado era provisório, próprio do desabafo, de um momento infeliz.

Não conheço dor que não seja desajeitada, ela vai declarar do jeito errado e do modo errado. Por que não desculpar?

Terapeutas conhecem o assunto a fundo. Toda discussão é um desespero e não pode sair agrados e elogios. Mesmo assim, fazemos de conta que é difamação e desrespeito. Mais fácil odiar do que continuar trabalhando as próprias limitações.

O boicote é uma forma de educar pelo sacrifício. A pior forma. É ficar preocupado em honrar o castigo. É preparar uma vingança ao invés de se distanciar um pouco para entender o que gerou a discórdia.

Trata-se ainda de um sacrifício mútuo, os dois vão perder a possibilidade de criar uma intimidade maior e mais generosa.

Aquele que atacou pedia ajuda. E atacou pois não sabia justamente pedir ajuda. Preocupados em nos defender, não alcançamos o apelo e retribuímos o inferno.

A palavra engana. A palavra manda embora e o corpo pede um abraço. Há de se procurar o gesto. O que me interessa é o gesto, o resto da palavra. A origem. Se aquilo foi feito para permanecer mais perto.

Quando viajo para serra gaúcha, as estradas me ensinam a importância do que é torto. Elas seguem a natureza ardilosa dos morros, assustam com suas curvas, mas sempre me deixam na cidade em que nasci.

É na briga que mostraremos nossa criatividade. Poderemos repetir os clichês: desaparecer para impor uma lição ou aparecer com namorado/namorada para humilhar ou fingir que nada sente. Poderemos repetir as convenções, defender o orgulho acima de tudo, nos preocupar com a honra mais do que com a relação, chamar de preguiça a falta de cuidado com o que foi dito, reclamar responsabilidade, impor ao outro a severidade de nossos princípios para mostrar o quanto somos nobres, coerentes e firmes.

Ou poderemos contrariar as expectativas com um talento incomum ao humor e ao entendimento.Só um debate tem tréplica. O diálogo não conta o tempo nem limita o direito de falar.

Se a separação depende de motivos, a reconciliação é muito melhor, não precisa deles.

Amor não dá a última chance, dá chance sempre. O capricho é cuidar do erro. Não há capricho sem usar a borracha e reescrever de novo.

"Fabrício Carpinejar.

Toda despedida é falsa (Trágico é que alguns acreditam)

'Tensionados, não existe escolha, existe precipitação. Alguém pedirá para sair.

Estamos os dois adoecidos, nenhum tem condições para ajudar o outro. Seu jeito de ser cuidada é diferente do meu jeito de ser cuidado.

Vou remando as bordas da camisa. Minha lentidão é despedida. Quando todo gesto se torna relevante por ser irrelevante. Não desloco os cotovelos porque os músculos argumentam que não vale a pena. Demoro nos movimentos singelos como levantar a xícara de café. Ele já esfriou e não sofro com isso. Não sofro com coisa alguma. O maior sofrimento é não sofrer. É quando não há nem mais ânimo para sofrer. E conhecemos a apatia da dor, um cansaço inacreditável e resta a canção sem a letra, resta a vontade do poema e sua desistência. O pensamento vem e apago. Não me interessa apanhá-lo. Passo a ser meu único leitor. Não tenho esperança de que ficará emocionada, que me avisará que foi um susto desnecessário e me acalmará para dormir em seguida.

Maravilho-me com seus cílios e não comento. Maravilho-me com suas pernas brancas, os joelhos lisos, e não sopro nada. Maravilho-me com sua boca graúda e não me inclino a acompanhá-la. Beijar é andar de lado no cavalo.

Permaneço sentado nas mãos. Solteiro dos anéis que não vieram. Se chover, então, vidro-me na varanda sem mexer o tronco. Torço para que a chuva demore. Não suportaria os conselhos das calhas.

Sou a completa anulação de sentido para me movimentar. Espero que pule da dor para me abraçar. Que tome uma atitude, que não me magoe. Mas sei que o entusiasmo é frágil. Podemos supor que estamos recuperados e logo afundaremos novamente no delírio. A cabeça nos engana e as pernas não mandam os últimos boletins.

Repare que o soro fala devagar como a gente nesta hora. Tão devagar que engolimos de volta a pronúncia, o soluço, o sim.

Acordei desejando mandar flores. O mesmo arranjo que enviei na primeira vez. Iria colocar junto sua canção de Ella Fitzgerald. Recuei de bobo. Achei que não mudaria nossas dificuldades.

Pensei em buscar um prato bem bonito do seu restaurante favorito e deixar em seu trabalho, já que não que terá tempo para almoçar. Mas retrocedi de novo. Achei que não contaria com tempo para agradecer.

Acovardo-me de gentilezas. Falta a esperança de que serão compreendidas. Ou que me procure com meus apelidos pelo caminho salteado do jardim.

Chegamos ao caroço, onde os temperamentos se definem, onde não há mais a concessão dos primeiros meses. A carência é um caroço. Por isso é duro atravessar. Não é mais aquela facilidade da polpa, de atravessar com o embalo do suco. É agora que seremos pedras num canto ou seremos raízes.

Arrebento-me de arroubos, arrebatamentos. Mas a realidade é longe de minha casa. Não há amigo que me transmita o que tenciono escutar, que arranque o pessimismo poroso das folhas. Anseio por algum médico que nos avise que temos poucos meses de vida; é o suficiente para reunir as forças.

Você é intensa, mas sua intensidade não costura para fora. Eu sou intenso, mas minha intensidade costura para fora antes mesmo de comprar os tecidos. Sei que não entendo nem metade do que já sentiu por mim. Por absoluta ausência de comunicação. Sei que não entende nem metade do que sinto por você. Por absoluta ausência de paciência. Eu preciso ouvir, você não precisa falar, nos amamos desinformados.

Maldita chuva que começou. Os relâmpagos são gravatas azuis em terno escuro. A sobriedade das sobras. A chuva sempre está vestida para velório. A chuva lava bagunçando. Deixa tudo mais sujo. Muito mais verdadeiro.

Pretendia dizer que

A solidão é cheia de boas intenções.

'Fabrício Carpinejar

UMA PAIXÃO EDUCADA OU O CENTURIÃO CUIDANDO DA JANELA

'Curtia um chopp absurdamente gelado num bar em Sampa. Minha mão não dava trégua para a bolacha.

Conversava com dois amigos até que um deles decidiu telefonar para a namorada. Uma das namoradas, por aquilo que entendi.

Aqueceu a bateria com os comentários sobre futebol e partia ao ataque.

Impressionante foi a rapidez da chegada dela. Ele ligou e ela prontamente apareceu. Como aladim esfregando o copo. Parecia que morava no segundo andar do prédio. Ou que já estava na porta, esperando o assovio.

Ela era um caso, apesar dele ser solteiro. Um caso para as noites urgentes. E o amigo não mudou o tom do papo com ingresso feminino na roda. Não fez nenhum esforço para incluí-la nos tópicos. Ficava nos encarando e seguia como se não houvesse um outro desejo em questão. Uma outra necessidade. Debochou do lugar em que ela nasceu e a provocava com a empáfia dos independentes. Envergonhada, não a observei rir e se soltar. Quis tomar a dianteira da conversa, perguntar, mas me intimidei porque a atitude seria compreendida como uma cantada e um enfrentamento desnecessário.

Ela pediu a bebida, sozinha.

Ela tentou comentar algo, sozinha.

Ela tirou o casaco, sozinha.

Ela colocou novamente o casaco, sozinha.

Os dois foram embora. Tomando chuva, ele na frente, ela atrás, sozinha.

Sua disponibilidade me transtornou. Era capaz de fazer tudo por ele mesmo que ele não oferecesse nada.
Ele procurando sexo, ela se cegando de amor. Ele se dificultando dentro do excesso de facilidades dela.
Naquele momento, eu capturei o sentido do centurião romano da janela. O sentinela da minha infância.
Quando arremessava as janelas de residência, eu me irritava com as travas. Nunca as malditas janelas entravam nas travas.
Os ganchos com as cabeças de homenzinhos prendiam as venezianas para que não batessem com o vento. Uma habilidade esticar as madeiras e levantar a pequena cancela. Acreditava que era um desperdício aqueles grampos, um capricho materno, perda de tempo. No fim, me atrasava ou ferrava minhas unhas.
Um parto na hora de abrir o par e um novo parto na hora de fechar, já que precisava pegar um guarda-chuva para alcançar a inclinação das madeiras e rebocar a sanfona.

Mas vejo o quanto estava errado. Não somente dependemos de janelas, mas da firmeza da gentileza. Do conforto do colo. Da segurança de um pouso. De uma paixão educada. Do que não será visto se for cumprido. Do que não será observado caso aconteça.

A luz que entra pelo quarto depende dos pinos que permitem que a janela não voe num temporal ou não estraçalhe os vidros com a ventania. Depende de um soldado cuidando do lado de fora. Vigiando secretamente.

É do invisível que somos feitos.'

Fabrício Carpinejar

Você me pediu um cigarro

"Você foi covarde.

Seu amor é forte, seu corpo é fraco. Você foi covarde como tantas vezes fui por acreditar que a coragem viria depois. A coragem não vem depois. A coragem vem antes ou não vem. Não posso amaldiçoar sua covardia. Sua boca não é rápida como suas pernas para me agarrar. Minhas pernas não são tão rápidas quanto minha boca para lhe impedir. Você foi covarde. Pela gentileza de sempre dizer sim, repetidos sim, quando não estava ouvindo. Já desfrutei de sua covardia, ríspido recusá-la agora porque não me favorece. Porque não fui escolhido. Não aquecerei seu prato para servi-la. Não a ajudarei no parto. Não partirei. Serei aquele que deveria ter sido, enterrado sem morrer, o que desapareceu permanecendo perto. Sou seu constrangimento mais alegre. Sua ferida, seu feriado. Com o tempo, serei sua vontade de se calar. De se retirar da sala. Não conhecerá meus hábitos de puxar o café antes de ficar pronto. De abrir as venezianas como quem procura reunir os chinelos ao vento. Você foi covarde, ninguém iria compreendê-la. Hoje todos a compreendem, menos você mesma. Você não se compreende depois disso. O que é imenso é estreito. O que é infinito fecha. Até o oceano tem becos e ruas sem saída. Até o oceano. Sua esperança não diminui a covardia. Quer um conselho? Finge que a dor que sente é a minha para entreter sua dor. Saudades ficam violentas quando mudamos de endereço. Saudades ficam insuportáveis quando mudamos de sentido.

Você confunde sacrifício com covardia. Compreendo. Eu confundo amor com loucura. Cada um tem seus motivos, sua maneira de se convencer que fez o melhor, fez o que podia. Você me avisou que não tinha escolha. Nunca teria escolha. Você foi educada com a vida, pediu licença, agradeceu os presentes. Confiou que a vida logo a entenderia. E cederia. Engoliu uma palavra para dormir. Não serei vizinho de seu sobrenome. Seus nomes esperam um único nome que ficou para trás. Você não desencarnou, não se encarnou, deixou sua carne parada nas leituras. Morrer é continuar o que não foi vivido. Vai me continuar sem saber. Você foi covarde. Com sua ternura pálida, seu medo de tudo, sua polidez em cumprir as promessas. Você não aprendeu a mentir. Tampouco aprendeu a dizer a verdade. O dia está escuro e não soprarei a luz ao seu lado. O dia está lento e não haverá movimento nas ruas. Você não revidou nenhuma das agressões, não revidará mais essa. Você foi covarde. A mais bela covardia de minha vida. A mais comovida. A mais sincera. A mais dolorida. O que me atormenta é que sou capaz de amar sua covardia. Foi o que restou de você em mim."

Fabricio Carpinejar

Não brinque comigo

"Tudo foi brincadeira, tudo o que falamos, tudo o que imaginamos, tudo o que faríamos se não fosse uma brincadeira.

Quando eu disse que podia, quando eu disse que queria, quando eu disse o que sentia por você.

Foi brincadeira seus braços estendidos como se fossem fechar em mim, minha doação de pernas pela sua linguagem, quando avisei que os pássaros morreram no mesmo dia nas gaiolas da janela e que o silêncio era agora insuportável, porque o silêncio lembrava o que ele substituiu.

Tudo foi brincadeira, um homem aceita que é brincadeira, mente que é brincadeira, porque a mulher perguntou se ele estava falando sério, a mulher desacreditou dele no exato momento em que ele mais acreditava, no momento em que ele treinava o sopro, no momento em que iria expor que a amava, no momento em que ele reaprendia a confiar. Antes de levar o fora, o homem dá o fora em si.

Tudo foi brincadeira, o homem vai esclarecer, o homem vai se arrepender, o homem vai disfarçar para se proteger, para não se diminuir, fechará a mão com o alpiste dentro, com a carta latejando dentro e ninguém mais decifrará a sua letra. Fracassará mais uma vez em sua esperança. Ficará mais uma vez com sua reputação.

Ele aceitará o riso a contragosto, voltará atrás como quem é flagrado roubando a mãe.

Ela dirá: ainda bem.

Ele dirá: não tinha como ser verdade.

Ela vai confessar que levou um susto.

Ele pedirá desculpa pelo mal-entendido.

Ela vai suspirar de alívio com o engano.

Ele vai fingir que não pensava diferente.

Ela vai afirmar que só o enxerga como amigo.

Isso vai doer nele, vai doer nele não ser o homem certo para ela e tentará não mostrar que está sangrando. Seguirá caminhando com a cabeça erguida até o fim da cicatriz, até que o joelho de sua boca canse de sangrar o mesmo sangue.

Tudo foi brincadeira porque ela zombou da possibilidade do amor e ele se acovardou e calçou novamente os sapatos e se viu nu enquanto ela ia e recolheu os cabelos que cresciam de seus cílios.

Tudo foi brincadeira, o pescoço de hortelã, as infâncias sentadas no portão de ferro controlando a cor dos carros, a fome esquecida para ficar mais tempo juntos.

Tudo foi brincadeira, as confissões, a cumplicidade, a intimidade. O período em que fiavam seus segredos, que se confessaram como nunca antes, que se planejaram como noivos, que se abriram como amantes.

Tudo foi brincadeira, tudo será sempre uma brincadeira sádica, uma brincadeira cruel, quando apenas um dos dois estiver amando. "


Fabrício Carpinejar

Mantra

"A sua irritação não solucionará problema algum...As suas contrariedades não alteram a natureza das coisas...Os seus desapontamentos não fazem o trabalho que só o tempo conseguirá realizar. O seu mau humor não modifica a vida... A sua dor não impedirá que o sol brilhe amanhã sobre os bons e os maus... A sua tristeza não iluminará os caminhos... O seu desânimo não edificará ninguém... As suas lágrimas não substituem o suor que você deve verter em benefício da sua própria felicidade... As suas reclamações, ainda mesmo afetivas, jamais acrescentarão nos outros um só grama de simpatia por você...Não estrague o seu dia. Aprenda a sabedoria divina, a desculpar infinitamente, construindo e reconstruindo sempre...Para o infinito bem!"

Viver

Qualquer coisa que você faça será insignificante, mas é muito importante que você o faça. Você pode não saber qual é o significado da sua vida, e não precisa. Precisa apenas saber que ela significa alguma coisa. Toda vida tem um significado, mesmo que dure 100 anos ou 100 segundos. Toda vida tem. E cada morte, muda o mundo do seu próprio jeito. Ghandi sabia disso. Ele sabia que sua vida significava alguma coisa para alguém, em algum lugar, de alguma forma. E ele sabia com muita certeza que ele jamais saberia o significado dela. Ele entendeu que viver a vida, deve ser mais uma grande preocupação, do que um entendimento. E eu também. Você pode não saber, então não leve isto por certo, não leve isso muito a sério. Não adie o que você quer, não deixe que nada o impeça. Apenas tenha certeza, de que as pessoas com que você se preocupa saibam. E tenham certeza do que você realmente sente, porque só assim tudo pode acabar."


(Mikaele. E)

Sozinho

“Se as pessoas estão sempre indo e vindo, eu só queria alguém minimamente eterno em sua duração, que me fizesse parar de achar normal essa história de perder as pessoas pela vida.

Vou embora querendo alguém que me diga pra ficar. Estou sempre de partida, malas feitas, portas trancadas, chave em punho. No fundo eu quero dizer “Me impede de ir. Fica parado na minha frente e fala que eu tenho lugar por aqui, que não preciso abandonar tudo cada vez que a solidão me derruba. Me ajuda a levar a vida menos a sério, porque é só

vida, afinal.” E acabo calada, porque não faz sentido dizer tudo isso sem ter pra quem.

Eu não quero viver como se sobrevivesse a cada dia que passo sozinha. Não quero andar como se procurasse meu complemento em cada olhar vago.

Eu acho que mereço mais que isso por tudo o que eu sei que posso fazer por alguém. E fico só esperando, na surpresa do dia que eu desencanar de esperar, um par de olhos que me faça ficar sem nenhuma palavra, nada além de dois olhos se enlaçando quatro. Nessa multidão de amores, sozinho é aquele que não espera.”



VERÔNICA HEISS.

Desesperança

"Não espero nenhum olhar, não espero nenhum gesto, não espero nenhuma cantiga de ninar. Por isso estou vivo. Pela minha absoluta desesperança, meu coração bate ainda mais forte. Quando não se tem mais nada a perder, só se tem a ganhar. Quando se pára de pedir, a gente está pronto para começar a receber. O futuro é um abismo escuro, mas pouco importa onde terminará a minha queda. De qualquer forma, um dia seremos poeira. Quem é você? Quem sou eu? Sei apenas que navegamos no mesmo barco furado, e nosso porto é desconhecido. Você tem seus jeitos de tentar. Eu tenho os meus. Não acredito nos seus, talvez também não acredite nos meus próprios. Não lhe peço que acredite em mim.”


Caio F.

Enquanto você não aprende

“Enquanto você não aprende a viver, você é imutável.

Você confia em todo mundo e depois não confia em mais ninguém.

Enquanto você não aprende a viver, a sombra de outra pessoa pode ser um bom lugar.

Enquanto você não aprende a viver, qualquer coisa serve.

Enquanto você não aprende a viver, você ignora seus talentos.

Enquanto você não aprende a viver, não ter opinião é uma opinião definitiva.

Enquanto você não aprende a viver, a média é um bom resultado.

Enquanto você não aprende a viver, os erros dos outros são inaceitáveis.

Enquanto você não aprende a viver, velhice é uma coisa para se preocupar no futuro.

Enquanto você não aprende a viver, você acha que Hitler foi um personagem do passado.

Enquanto você não aprende a viver, nunca vai olhar para a pessoa que está do seu lado e saber que ela te suporta de bom grado.

Enquanto você não aprende a viver, você quer salvar o planeta, mas nunca plantou uma árvore ou fez descarte seletivo do lixo.

Enquanto você não aprende a viver, você é um revolucionário sem causa.

Enquanto você não aprende a viver, você é promiscuo com seus valores.

[Mulher] Enquanto você não aprende a viver, o soco de um homem é só um momento de stress. Vai passar.

Enquanto você não aprende a viver, a infelicidade é parte da felicidade.

Enquanto você não aprende a viver, política é uma coisa para os outros fazerem.

Enquanto você não aprende a viver, Guevara foi só um maluco barbado e Mandela é um negro sorridente.

Enquanto você não aprende a viver, a marca do que você veste é mais importante que sentir-se confortável.

Enquanto você não aprende a viver, você guarda livros e roupas e objetos que nunca serão usados.

Enquanto você não aprende a viver, você já sabe viver sozinho.

Enquanto você não aprende a viver, você cometeria suicídio por amor, mas você nunca doou sangue.

Enquanto você não aprende a viver, a gaiola é o mundo.

Enquanto você não aprende a viver, os outros é que estão errados.

Enquanto você não aprende a viver, você vai jogando oportunidades fora, porque acredita que elas são ilimitadas.

Enquanto você não aprende a viver, a religião é Cristo e não Cristo é a religião.

Enquanto você não aprende a viver, você acha mesmo que é importante.

Enquanto você não aprende a viver, o que importa é o volume.

Enquanto você não aprende a viver, falar é mais importante que ouvir.

Enquanto você não aprende a viver, sexo é gozar e cair fora.

Enquanto você não aprende a viver, teus pais são uns chatos.

Enquanto você não aprende a viver, você faz e recebe muitas feridas na alma.

Enquanto você não aprende a viver, Deus é só uma força cósmica.

Enquanto você não aprende a viver, os verdadeiros amigos são só mais alguns amigos dos muitos que você acredita que terá na vida.”



Kléber Novartes.

Não julgue

“Não o julgues levianamente nem apaixonadamente, como costumas fazer com tudo, se à primeira vista houver nele qualquer coisa que não te agrade. Digo isso apenas por cautela, pois estou convencida de que ele há de causar-te boa impressão. Além de que, para conhecer uma pessoa, seja ela quem for, é preciso proceder de maneira prudente e discreta, a fim de não incorrermos em erros nem em juízos precipitados, que depois custam muito a desfazer e a retificar”

F. Dostoiévski.

Final feliz

'Às vezes focamos tanto em achar nosso final feliz que não aprendemos a ler os sinais, a diferenciar entre quem nos quer e quem não nos quer, entre os que vão ficar e os que vão nos deixar. E talvez esse final feliz não inclua um cara incrível. Talvez seja você sozinha recolhendo os cacos e recomeçando, ficando livre para algo melhor no futuro. Talvez o final feliz seja só seguir em frente. Ou talvez o final feliz seja isto: saber que mesmo com ligações sem retorno e corações partidos, com todos os erros estúpidos e sinais mal interpretados, com toda a vergonha e todo constrangimento, você nunca perdeu a esperança.'

Voo

“Somos assim. Sonhamos o vôo, mas tememos as alturas. Para voar é preciso amar o vazio. Porque o vôo só acontece se houver o vazio. O vazio é o espaço da liberdade, a ausência de certezas. Os homens querem voar, mas temem o vazio. Não podem viver sem certezas. Por isso trocam o vôo por gaiolas. As gaiolas são o lugar onde as certezas moram. É um engano pensar que os homens seriam livres se pudessem, que eles não são livres porque um estranho os engaiolou, que se as portas das gaiolas estivessem abertas eles voariam. A verdade é o oposto. Os homens preferem as gaiolas ao vôo. São eles mesmos que constroem as gaiolas onde passarão as suas vidas.”

Rubem Alves.

Conselhos

“Não percebo quando estou recebendo conselhos ou dando conselhos. Não há um
aviso: preste atenção, isso vai servir para toda tua vida. Conselho não é cerca
eletrônica. É falar com fraqueza. A fraqueza é franqueza. E ocorre no momento em
que não se pretende convencer ninguém, muito menos a si. Conselho é a total
falta de persuasão, desobrigação. As linhas que sublinhei num livro são meus
pensamentos. As linhas que não sublinhei são conselhos. Conselho não pode ser
ralhado. Não pode ser imposto, ditado, planejado. Não é necessariamente para ser
seguido ou compreendido. Não se trata de uma explosão, mas de um estalo. Suave,
despretensioso e que é capaz de ser descoberto anos depois. O que acreditava que
serviria a minha vida não prestou e o que não acreditava resultou em
ensinamento. Talvez olhar de cara feia seja o sinal de que é um conselho.”


Fabrício Carpinejar.

O outro

“Que o outro note quando preciso de silêncio e não vá embora batendo a porta,

mas entenda que não o amarei menos porque estou quieta.

Que o outro aceite que me preocupo com ele e não se irrite com minha solicitude, e se ela for excessiva saiba me dizer isso com delicadeza ou bom humor.

Que o outro perceba minha fragilidade e não ria de mim, nem se aproveite disso.

Que se eu faço uma bobagem o outro goste um pouco mais de mim, porque também preciso poder fazer tolices tantas vezes.

Que se estou apenas cansada o outro não pense logo que estou nervosa, ou doente, ou agressiva, nem diga que reclamo demais.

Que o outro sinta quanto me dóia idéia da perda, e ouse ficar comigo um pouco - em lugar de voltar logo à sua vida.

Que se estou numa fase ruim o outro seja meu cúmplice, mas sem fazer alarde nem dizendo ”Olha que estou tendo

muita paciência com você!”

Que se eventualmente perco a paciência, perco a graça e perco a compostura, o outro ainda assim me ache linda e me admire.

Que o outro não me considere sempre disponível, sempre necessariamente compreensiva, mas me aceite quando não estou podendo ser nada disso.

Que, finalmente, o outro entenda que mesmo se às vezes me esforço, não sou, nem devo ser, a mulher-maravilha, mas apenas uma pessoa: vulnerável e forte, incapaz e gloriosa, assustada e audaciosa - uma mulher.”



Lya Luft.

Pense bem

"Fique atento com o que você jogou fora, muito cuidado com o que você afastou e pense bastante antes de ir embora.

Nem todas as pessoas são tão fortes quanto você pensa que elas sejam, nem todas suportam bem as mágoas recebidas e nem todas perdoam para aceitar de volta. A dor que você provoca em uma pessoa, fatalmente retornará. Algumas vezes sem muita pressa, mas em uma intensidade infinitamente maior que a provocada anteriormente."

Mais ou menos não rende papo

'Me diga que está triste, eu consolo. Me diga que nunca foi tão feliz, eu concordo. Me ame ou me odeie. Me mande pra puta-que-o-pariu ou me convide pra ir com você. Exploda na minha cara ou se derreta na minha mão. Deixa eu te ver morrendo de tanto rir ou com vergonha das olheiras de tanto chorar. Só não me esconda o rosto. Me abrace, me esmurre, me lamba ou me empurre. Só não me balance os ombros. Não me perturba assistir tua dor nem acompanhar teu gás. Te ver mais ou menos realmente me incomoda. Mais ou menos não rende papo, não faz inverno nem verão, não exige uma longa explicação. É melhor estar alegre ou estar triste, mais ou menos é a pior coisa que existe.'

Gabito Nunes

Inspirado no cheiro da sua mão

'E aí? Que tal? Vamos? Como soa dividir comigo essa existência idiotamente ridícula, morna, real, estúpida, bagaceira e imbecil? Vamos fazer diferente, como ninguém mais sabe fazer, só nós? Diz que vamos, vai.

Não? É tudo que preciso pra começar a te conquistar. Diz que não com os olhos cheios de esperança. Com duzentos "nãos" eu construo um castelo, uma roda gigante, uma cabaninha de lençol na sala, um altar, um amor, um sim bem grande. Com um sim entre você e eu, te roubo inteira e metade da felicidade do mundo. Diga que não, ponha uma meta no meu colo, tipo num processo de seleção feminina só pra eu provar que sou o cara.

Isso, faz assim. Se faz de labirinto quando eu me oferecer em linha reta. Diz que metade de mim, a parte amigo, tá bom, só pra me empurrar inteiro coração adentro, goela abaixo, com toda a calma do mundo. Isso, faz assim. Dá voltas e voltas e voltas na chave da tua emoção só pra eu me exibir que posso te desarmar, desarrumar sua vida e seus cabelos. Embora eu não te ame ainda, mesmo o amor não existindo, diga não e me encoraje a pôr tudo à prova.

Finge não me querer, disfarce o brilho no olhar, esconda o sorriso atrás dos cabelos, ganhe torcicolo de tanto cuidar o outro lado, mostre o cofrinho se abaixando quando eu passar rasando, fique o tempo todo pensando no jeito infalível de ganhar o Oscar de melhor "tô nem aí". Me ache chato se eu te procurar, me ache o homem da sua vida se eu sumir, me veja feio do teu lado, me veja lindo do lado das outras. Diga trocentas vezes pro espelho na sua bolsa que sou o cara mais idiota, mais engraçado, mais fajuto, mais encantador que você fingiu não gostar.

Perfeito assim. Fosse sem esses enigmas, sem esses rodeios, sem esses movimentos, sem esses contrastes eu a rejeitaria como todas as outras. Vem assim como uma onda que não se congela pra eu pegar, como uma música do Djavan. Mas alerto já que estarei esperando com os pés e o desejo de te ter pra mim descalços, esperando você se desfazer, perder energia e parar na areia, nos meus braços, no meu sofá.

Bolei um plano pra trazer você pra mim, todo inspirado no cheiro da sua mão. É mais ou menos assim: você finge me repelir como fosse eu um ex-presidiário estuprador, bagaceiro e ressentido, e eu chego arrombando sua porta, suas pernas, sua alma. Aí você se dá conta que para voar é preciso tirar o peso dos ombros, se desanda, e diz pra mim, no ouvido, com um fio de voz e outro de esperança de que seja tudo real, que isso é o maior erro do ano, que não imaginava existir tanta culpa no céu, que as pessoas ficaram mais bacanas depois que encasquetei em te querer. Tudo sorrindo mais do que seu rosto aguenta.

E devolvo, puxando com os dentes seu lóbulo, que nossa história foi escrita torta de propósito pra gente se cruzar, tudo enquanto eu babo sobre teus encantos, enquanto eu faço o sexo mais manso e mais intenso e mais irreversível e mais gostoso e mais carinhoso e mais sem camisinha e mais duradouro da sua vida, tanto que você perde seus orgasmos por birra, contrai a pélvis pra eu não gozar de pirraça, de tanta vontade de nunca mais me deixar sair de onde eu nunca deveria ter entrado.

Depois, com pequenos beijinhos e mordiscadas virando e desvirando seu corpo, virando e revirando seus olhos, convenço que os maiores amores se acertam nos erros, quando a loucura e a entrega vencem a resistência e o medo de alguma forma. Começo num beijo no canto da boca, aqueles que cabe a você decidir se acaba, ou prossegue, tá? Então, vamos? Pega na minha mão, entra no meu carro, sobe na minha garupa. Te mostro o quanto dá pra amar no caminho.'

Gabito Nunes

O amor no colo

"A dor não pede compreensão, pede respeito.
Não abandonar a cadeira, ficar sentado na posição em que ela é mais aguda.

Vejo homens que não têm coragem de terminar o relacionamento. Que não esclarecem que acabou. Que deixam que os outros entendam o que desejam entender. Que preferem fugir do barraco e do abraço esmurrado. Saem de mansinho, explicando que é melhor assim: não falar nada, não explicar, acontece com todo mundo.

Encostam a porta de sua casa (não trancam) e partem para outra vida.

Não é melhor assim. Não tem como abafar os ruídos do choro. O corpo não é um travesseiro. Seca com os soluços.

Não é melhor assim. Haverá gritos, disputa, danos. É como beber um remédio, sem empurrar a colher para longe ou moldar cara feia. É engolir o gosto ruim da boca, agüentar o desgosto da falta do beijo.

Será idiota recitar Vinicius de Moraes: "que seja infinito enquanto dure". A despedida não é lugar para poesia.

Haverá uma estranha compaixão pelo passado, a língua recolhendo as lágrimas, o rosto pelo avesso. Haverá sua mulher batendo em seu peito, perguntando: "Por que fez isso comigo?"

Haverá a indignação como última esperança.

Haverá a hesitação entre consolar e brigar, entre devolver o corte e amparar.

Vejo homens que somente encontram força para seduzir uma mulher, não para se distanciar dela.

Para iniciar uma história, não têm medo, não têm receio de falar.

Para encerrar, são evasivos, oblíquos, falsos. Mandam mensageiros.

Não recolhem seus pertences na hora. Voltarão um novo dia para buscar suas coisas.

Não toleram resolver o desespero e datar as lembranças. Guardam a risada histérica para o domingo longe dali.

Mas estar ali é o que o homem precisa. Não virar as costas. Fechar uma história é manter a dignidade de um rosto levantado, ouvindo o que não se quer escutar. Espantado com o que se tornou para aquela mulher que amava. Porque aquilo que ela diz também é verdade. Mesmo que seja desonesto.

Desgraçadamente, há mais desertores do que homens no mundo.

Deveriam olhar fora de si. Observar, por exemplo, a dor de uma mãe que perde seu filho no parto.

O médico colocará o filho morto no colo materno. É cruel e - ao mesmo tempo - necessário. Para que compreenda que ele morreu. Para que ela o veja e desista de procurá-lo. Para que ela perceba que os nove meses não foram invenção, que a gestação não foi loucura. Que o pequeno realmente existiu, que as contrações realmente existiram, que ela tentou trazê-lo à tona. Que possa se afastar da promessa de uma vida, imaginar seu cheiro e batizar seu rosto por um instante.

Descobrir a insuportável e delicada memória que teve um fim, não um final feliz.

Ainda que a dor arrebente, ainda é melhor assim."

Fabrício Carpinejar

Antes da dor

'Não vou telefonar, não vou mandar torpedo, apesar da vontade imensa de reatar. O orgulho assumiu meu quarto. Conversa com ele agora. Com essa governadora das minhas desvalias, do meu guarda-roupa e sapatos. Estou de castigo, protegido, ausente, impedido de responder por mim. Se fosse responder, avisaria que dependo de você, que a desejo de volta. Infelizmente sou capacho de minha angústia. Piso em minhas palavras para limpar os pés da chuva.

O desamor é treino. Não existe desamor. Existe ensaio, simulação da indiferença, controle absurdo do cumprimento. Não que não sinta nada por você, sinto absolutamente tudo mais do que nunca e não consigo comunicar. Os cotovelos latejam, a cabeça bóia, as pernas mergulham numa fraqueza de maratona.

É esquisito ser seu ex. O corpo não aceita participar da greve de fome. No dia seguinte, sou seu ex-namorado. Acordei ex. Pronto. Na noite anterior, era o homem mais importante. Agora virei um estranho, um engano. É excessivamente cruel. Largar uma história em comum sem nenhuma desintoxicação, tratamento. Sem nenhuma antessala para chorar, berrar, espernear, expiar a febre. É muito mais grave de que um vício.

Quando você ardia alguma angústia, dizia que logo passava.

Não passará logo. Fingirei. Fingirei que me darei melhor sozinho. É uma estrondosa mentira que também acreditará porque não tem escolha. Sou uma mesa para dois, serei sempre uma mesa para dois. Levarei minhas malas para ocupar a cadeira ao lado. Enfrentarei o questionamento: “onde você anda?”, nos lugares que frenquentávamos juntos.

Explicarei que brigamos, escutarei dos amigos que é normal e que logo faremos as pazes, comentarei que é definitivo por educação e para não sofrer mais.

O ex mente, integralmente mente, complicado porque você me ensinou a gostar de verdade. Não tivemos filhos, não tivemos uma casa para dividir a partilha, não tivemos um cachorro para se procurar novamente. Não projetamos pretextos para a reconciliação, como esquecemos disso? Nosso amor não tem endereço como um circo, montado e desmontado na estrada.

Como dói o que não começou a doer. Não preciso de férias, preciso de outra vida.'

Fabrício Carpinejar

Se quer mesmo saber de mim

'O que eu sou não lhe diz respeito, em parte nenhuma lhe toca. Nasci para poucos e morro por quase ninguém. Contradigo-me em passos de dança invisíveis, enlaçando pernas e prendendo bocas, querendo muito e gostando tão pouco. Não é insatisfação ou sofrimento, é só um tudo ao mesmo tempo agora que não respeita amor de menos, não aceita um gostar pouquinho e querer às vezes. Uma intensidade que não se conforma com noites únicas de começo, meio e fim. Se estou aqui é pela música, pela companhia, pra me perder. Jamais pra desperdiçar uma noite com quem não sabe conversar.

Não me pergunte o que eu faço da vida, isso é banal, é triste, é comum. Queira saber o que me faz feliz, meu ponto fraco pras cócegas. Não pergunte o que me dá dinheiro, porque este é o menor dos meus sucessos. Esqueça meu nome verdadeiro, se eu venho sempre aqui, se estou gostando da música. Agir sem naturalidade é o seu maior fracasso.

Se é mesmo importante que eu responda as perguntas que tanto desprezo, se definir o que sou vai te fazer mais feliz, se quer mesmo saber de mim, comece pelas entrelinhas. Pelo não dito. Pelo movimento dos cílios e as pupilas dilatadas, os olhos nervosos que não se fixam, o modo de apoiar o peso do corpo em uma das pernas e me preocupar com o cabelo. Olhe para as mãos que não sabem repousar e a voz que desafina. Por favor, sou tão ridiculamente fácil de decifrar e ainda insistem em seguir pelo caminho errado. Exponho-me tanto e ainda querem uma cartilha.

E fazem isso porque amam de relance, querem no momento e só por desafio. Porque têm preguiça ou medo de cumplicidade e acreditam perder a noite se optarem por se apaixonar pelo próprio ego. Porque perdem oportunidades de se calarem quando é papel dos olhos falar.

É por isso que eu estou sozinha nesse mundo de luzes e pessoas. É por isso que eu saio de casa e minha roupa não precisa agradar ninguém além de mim. Porque não deixo o calor da minha rotina pra ser prenda em vitrine

O que eu sou não lhe diz respeito, em parte nenhuma lhe toca. Mas se quiser mesmo saber de mim, experimente não me perguntar. E talvez assim desperte minha vontade de contar.'



Verônica H.

Vampiros

' Eu não acredito em gnomos ou duendes, mas vampiros existem. Fique ligado, eles podem estar numa sala de bate-papo virtual, no balcão de um bar, no estacionamento de um shopping. Vampiros e vampiras aproximam-se com uma conversa fiada, pedem seu telefone, ligam no outro dia, convidam para um cinema. Quando você menos espera, está entregando a eles seu rico pescocinho e mais. Este "mais" você vai acabar descobrindo o que é com o tempo. Vampiros tratam você muito bem, têm muita cultura, presença de espírito e conhecimento da vida. Você fica certo que conheceu uma pessoa especial. Custa a se dar conta de que eles são vampiros, parecem gente. Até que começam a sugar você. Sugam todinho o seu amor, sugam sua confiança, sugam sua tolerância, sugam sua fé, sugam seu tempo, sugam suas ilusões. Vampiros deixam você murchinha, chupam até a última gota. Um belo dia você descobre que nunca recebeu nada em troca, que amou pelos dois, que foi sempre um ombro amigo, que sempre esteve à disposição, e sofreu tão solitariamente que hoje se encontra aí, mais carniça do que carne. Esta é uma historinha de terror que se repete ano após ano, por séculos. Relações vampirescas: o morcegão surge com uma carinha de fome e cansaço, como se não tivesse dormido a noite toda, e você se oferece para uma conversa, um abraço, uma força. Aí ele se revitaliza e bate as asinhas. Acontece em São Paulo, Manaus, Recife, Florianópolis, em todo lugar, não só na Transilvânia. E ocorre também entre amigos, entre colegas de trabalho, entre familiares, não só nas relações de amor.

Doe sangue para hospitais. Dê seu sangue por um projeto de vida, por um sonho. Mas não doe para aqueles que sempre, sempre, sempre vão lhe pedir mais e lhe retribuir jamais.'

Martha Medeiros

Do amor e outras coisas

Há coisas que não precisam ser ditas, mas mesmo assim é preciso saber com o coração, que lá no fundo, por mais que a gente saiba e os gestos contem, ouvir de quem se ama que se ama, nunca é demais. Não deixar lacuna nos dias, nas ações e nos diálogos, não deveria ser algo que a gente aprende, aceite e passe a conviver. Tem tanta gente melhor do que solidão a dois machucada. A gente deveria perder o medo de viver com a gente mesmo desde cedo, mas parece que a gente só aprende depois de levar tanta rasteira da vida. Brigas e desentendimentos fazem parte de qualquer crescimento de uma relação, a gente briga com a gente mesmo a toda hora, por querer se desprender de tanta amarra que se leva no peito, que dirá com outra pessoa que teve experiências tão diferentes das nossas. O que não pode e não se deve aceitar é essa parte ser maior do que os dois juntos. É preciso ter espaço pra sentir, ser, crescer, mas sempre em liberdade, que é pra não arranhar. Como toda plantinha que precisa de cuidado todo dia, mas se você um dia não aumenta o vasinho com a terra que ela precisa, um dia ela para de crescer. E eu vejo tanta história de relação morrer assim todos os dias... E histórias de gente apressada que quer transformar semente em árvores. Nada cresce assim, a natureza tem seu tempo assim como o coração da gente. E quando uma história não vai bem, não significa que todas as outras que viver serão assim. Mas é preciso vigiar o coração pra não repetir padrões. E é preciso de tempo, muito tempo. Um coração ferido, não ama, não se entrega, não vê beleza onde quer que olhe, tudo dói e pesa. Aí depois a gente fica se perguntando porque não deu certo. Uma vez li que não existe a pessoa certa e sim, a hora e o momento certo, quando li isso pela primeira vez discordei, achei absurdo e fiquei revoltada. Tão longe do sonho romântico que a gente carrega desde menina, com histórias de príncipes encantados prometidos e Cinderelas em carruagem com cavalos brancos. Mas quando li pela segunda vez eu entendi: há momentos na nossa vida que não estamos preparados pra receber, nem dar, amor. Quantas pessoas realmente legais já passaram por nós e nós nem enxergamos; quantas vezes a gente já olhou escondido pro passado e se perguntou o que teria acontecido se tivesse dado tal chance a tal pessoa; quantas relações seriam diferentes em épocas diferentes, com idades e maturidades diferentes... Quanto mais eu cresço eu vejo que estar com a pessoa certa tem mais a ver com o momento certo do que propriamente com ela. Eu sei, eu sei... é difícil aceitar isso e se desfazer dos sonhos e de papéis encantados que um outro ser humano exerce na gente. Mas se desfazer das desilusões é encontrar o caminho mais cedo para a felicidade. Que assim o encontro - que todos nós levamos secretamente lá no fundo, de almas perfeitas e gêmeas que se encontram e se encaixam desde o primeiro olhar - possa ser mais real e mais justo com o outro e com a gente mesmo. Pra que aí sim, o encontro possa ser inteiro.



Aline d'Able

Acabei mudando

“Só que aí eu acabei mudando. E foi mudança aos poucos, porque até hoje me dou conta de coisas minhas que já não estão mais lá e, quem roubou, eu jamais vou saber. O sorriso mudou e a vontade de sorrir pra qualquer pessoa também, graças a Deus. Foi por sorrir tanto de graça que eu paguei tão caro por todas as coisas que me aconteceram. Às vezes me pego olhando ao meu redor e vendo tanta menina parecida comigo. Tanto sentimento gritando de bocas caladas e escorrendo de peles secas. Tanta coisa acontece com a gente. Tanta gente passa pela gente, mas tão pouca gente realmente fica. E eu sei que, talvez, eu tivesse que ficar triste. Talvez eu tivesse que continuar secando lágrimas, abraçando o vento e rindo no vácuo, mas o fato é que eu não consigo. Eu não consigo mais ser triste só para mostrar que um dia eu fui - ou achei que tivesse sido - feliz. Aprendi com os meus próprios erros que sofrer não torna mais poético, chorar não deixa mais aliviado e implorar não traz ninguém de volta. Aprendi também que por mais que você queria muito alguém, ninguém vale tanto a pena a ponto de você deixar de se querer. Eu que gritei para tantas pessoas ficarem, hoje só quero mesmo é que elas sumam de uma vez por todas. E em silêncio, que é pra ninguém ter porque se lamentar.”

(Tati Bernardi)

Agosto

'Para atravessar agosto é preciso, antes de tudo, paciência e fé. Paciência para cruzar os dias sem se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro – e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah! Escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo, em frente.'

Coisas que levei anos pra aprender

1. Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa.

2. As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você, quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas.

3. Ninguém liga se você não sabe dançar. Levante e dance.

4. A força mais destrutiva do universo é a fofoca.

5. Não confunda nunca sua carreira com sua vida.

6. Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria "reuniões".

7. Há uma linha muito tênue entre "hobby" e "doença mental".

8. Seus amigos de verdade amam você de qualquer jeito.

9. Nunca tenha medo de tentar algo novo. Lembre-se de que um amador solitário construiu a Arca. Um grande grupo de profissionais construiu o Titanic.

Luís Fernando Veríssimo

A mentira

'A mentira sempre foi detestável para mim. Por motivos muito pessoais, sempre a vi como inimiga. Concordo muito menos com pequenas mentiras. Reflexo de quem, desde sempre, teve grandes amores roubados por mentiras. Histórias que em minutos descobria-se mentira, pura, única e absoluta. Daí minha aversão às pequenas mentiras encobertas, que sei bem, muito bem, crescerão e novamente me roubarão muito. Marcas que faço questão de não perder. Vou ao extremo de que se não pode contar a verdade, não faça. Hoje me percebo esquisita quando vivo relações vista por outros de impróprias, mas que se mantém pela verdade. Vejo-me estranha quando não consigo alimentar amor por quem me faz mal, a despeito de todos que choram anos por não conseguir se desligar de quem tanto mal lhe faz. Perdoe-me, mas não sinto pena de quem alimenta mentiras e quer colher verdades. Não gosto de feições caprichadas para enganar corações sinceros ou lágrimas que tornam vítima quem não é. O mundo não perdoa os fortes, e há quem acredite que dramatizar o torna mais amado. Prefiro relações práticas, de quem ama em gestos. Prefiro não escutar declarações e ter certeza de que a companhia é certa. E ironicamente, embora tenha uma visão bastante romântica, não suporto mentiras melosas. Romântico para mim é estar junto com sinceridade, com amizade certa, apesar das diferenças e dissentimentos. Não acredito que seja romantismo manter a alegria fingida que não permite verdades com o pretexto de manter a aparência. Não consigo ver a lógica de alguém se sentir amado sabendo que amam nele uma mentira. Pois bato o pé e afirmo que não quero essa espécie de amor que mente para proteger. Isso soa tão irônico para mim, que como defensora nata do amor, acho um desrespeito chamar de amor. Quem ama não engana, não omite, não mente. Quem ama pode errar, é possível. Mas por ser amor, são sempre bem claros os sinais de que a intenção era pura. E antes que me julgue exagerada, purista ou falsa moralista, eu digo que não acho ou penso, mas tenho certeza, muita certeza. Afinal, eu amo. Na verdade, eu amo.'