Pedaços Humanos

quinta-feira, 1 de março de 2012

UMA PAIXÃO EDUCADA OU O CENTURIÃO CUIDANDO DA JANELA

'Curtia um chopp absurdamente gelado num bar em Sampa. Minha mão não dava trégua para a bolacha.

Conversava com dois amigos até que um deles decidiu telefonar para a namorada. Uma das namoradas, por aquilo que entendi.

Aqueceu a bateria com os comentários sobre futebol e partia ao ataque.

Impressionante foi a rapidez da chegada dela. Ele ligou e ela prontamente apareceu. Como aladim esfregando o copo. Parecia que morava no segundo andar do prédio. Ou que já estava na porta, esperando o assovio.

Ela era um caso, apesar dele ser solteiro. Um caso para as noites urgentes. E o amigo não mudou o tom do papo com ingresso feminino na roda. Não fez nenhum esforço para incluí-la nos tópicos. Ficava nos encarando e seguia como se não houvesse um outro desejo em questão. Uma outra necessidade. Debochou do lugar em que ela nasceu e a provocava com a empáfia dos independentes. Envergonhada, não a observei rir e se soltar. Quis tomar a dianteira da conversa, perguntar, mas me intimidei porque a atitude seria compreendida como uma cantada e um enfrentamento desnecessário.

Ela pediu a bebida, sozinha.

Ela tentou comentar algo, sozinha.

Ela tirou o casaco, sozinha.

Ela colocou novamente o casaco, sozinha.

Os dois foram embora. Tomando chuva, ele na frente, ela atrás, sozinha.

Sua disponibilidade me transtornou. Era capaz de fazer tudo por ele mesmo que ele não oferecesse nada.
Ele procurando sexo, ela se cegando de amor. Ele se dificultando dentro do excesso de facilidades dela.
Naquele momento, eu capturei o sentido do centurião romano da janela. O sentinela da minha infância.
Quando arremessava as janelas de residência, eu me irritava com as travas. Nunca as malditas janelas entravam nas travas.
Os ganchos com as cabeças de homenzinhos prendiam as venezianas para que não batessem com o vento. Uma habilidade esticar as madeiras e levantar a pequena cancela. Acreditava que era um desperdício aqueles grampos, um capricho materno, perda de tempo. No fim, me atrasava ou ferrava minhas unhas.
Um parto na hora de abrir o par e um novo parto na hora de fechar, já que precisava pegar um guarda-chuva para alcançar a inclinação das madeiras e rebocar a sanfona.

Mas vejo o quanto estava errado. Não somente dependemos de janelas, mas da firmeza da gentileza. Do conforto do colo. Da segurança de um pouso. De uma paixão educada. Do que não será visto se for cumprido. Do que não será observado caso aconteça.

A luz que entra pelo quarto depende dos pinos que permitem que a janela não voe num temporal ou não estraçalhe os vidros com a ventania. Depende de um soldado cuidando do lado de fora. Vigiando secretamente.

É do invisível que somos feitos.'

Fabrício Carpinejar

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