Pedaços Humanos

domingo, 15 de julho de 2012

Segundas chances nunca dão certo

"Eu apostei errado. E o que mais dói é reconhecer isso. Não é pela perda do tempo ou do investimento. É pela perda da história toda. Aquele momento em que eu paro e me pergunto se não teria sido melhor se nem tivesse tentado. Me alertaram sobre segundas chances e esse nosso modo requentado de fazer as coisas. Não dei ouvidos a eles e me cansei no exato momento em que disseram que a nossa engrenagem já tinha enferrujado porque passou muito tempo sem funcionar. Fui mais teimoso ainda e tentei mais uma vez. À força. Na marra. Com vontade e empurrões até as coisas voltarem a girar no tranco. Amor que já passou é meio como aquela camisa velha que a gente ainda guarda com carinho. Não é mais bonita como antes, não cai tão bem quanto antes e também não tem mais tanta utilidade assim. A gente vestiu por algum tempo, deixou que todos nos vissem com ela, passou por bons e maus momentos com ela. E daí ela simplesmente foi tirada da gaveta de cima e colocada no fundo do armário. Mas a gente não descansou. Foram algumas fotos e talvez o sorriso machucado do outro que aparecia de vez em quando. Foram as notícias de que você ia bem, obrigado. Foi saudade e a vontade de ter você aqui de novo. A gente alongou aquele ponto final e forçou um pouco o espaço para fazer caber algumas reticências. E a camisa velha? Se a gente ainda tirar do fundo do armário onde ela está escondida, a gente vai se agarrar. Nos agarramos. Maldito conselho. Maldito destino. A gente se baseia o tempo todo no otimismo das segundas e terceiras e quartas chances. Só que chega uma hora que a gente precisa admitir que não dá mais. Que acabou. Que o nosso amor requentado já passou da validade e não serve mais pra ser usado de vez em quando. O algodão da camisa é familiar, o conforto é melhor do que qualquer outro tecido e existem lugares e lembranças embutidos naquela peça de roupa. Deveria jogar fora de uma vez por todas. Mas não sei se eu consigo jogar fora assim. O apego quer que eu continue vestindo essa camisa pelo tempo que ainda puder. O problema é olhar pra você e dizer que eu vou embora. E te encontrar por aí amanhã com aquele olhar de quem acreditou mais uma vez em nós. Como se eu tivesse feito uma promessa furada. Como se eu não tivesse perdido nada nessa decisão. O problema é pensar que o erro foi duplicado. E dividido por dois. Eu e você na corda bamba das segundas chances cheios de boas intenções. O pior nem é o erro mesmo, a gente sabe. O pior é o acerto que não foi revogado, convocado de volta ao fundo do armário. E agir como dois conhecidos que compartilharam duas vidas. Uma tentativa e um outro fracasso. A dor agora é dor repetida. A sensação que acompanha o empacotamento das caixas mais uma vez. A gente já viveu isso e repetir parece duplamente doloroso. Se não bastasse o rumo, a gente tinha que perder o jeito? Segundas chances deveriam vir com um aviso de “Cuidado. Frágil!” na caixa de entrega. E deveria ser proibido que nos dessem outras chances além dessas. Nossos contos não foram feitos para serem revividos, nem reinterpretados. Mas amor interrompido tem dessas coisas de remendo. Ficam as sobras, a gente costura. Ficam as sombras, a gente esconde. Fica a falta de novidade e a gente aprende a viver de velhas notícias. Mas amor mesmo é aquele que desperta a gente todo dia. Exige frescor e não suporta repeteco. Dessa outra vez, eles não alteraram o script. Deram uma série conhecida pra gente interpretar. Você conhece as cenas e eu também. Mas a gente não admite que o final esteja ali, tão certo como no roteiro. A gente bateu o pé e tentou mudar o rumo. E ficamos apenas na tentativa."

8 coisas óbvias que você deveria saber sobre relacionamentos

"Quase todo mundo concorda que relacionamento é algo imprevisível. Você não sabe o que vai acontecer e muito menos como você e a outra pessoa reagirão às situações e aos problemas que forem aparecendo. Mas todo mundo sabe que existem coisas óbvias que, se forem aprendidas e compreendidas, podem facilitar (e muito) a nossa vida. O problema é que a gente nunca pensa sobre o óbvio de forma óbvia. A gente sempre acha tão clichê que não vai acontecer com a gente e, quando acontece, não se sabe como lidar. Então aqui vai uma lista de 8 coisas óbvias sobre relacionamentos que você deveria saber. 1) Nada vai ser igual ao início. Se você passar o resto do seu relacionamento dizendo que o outro não é mais a pessoa por quem você se apaixonou e que “no início era tudo melhor”, você vai se martirizar à toa. As pessoas convivem, as coisas mudam um pouco, mas o importante é tentar evoluir com essa mudança e não ficar comparando ao ápice da paixonite que era o início. 2) Vocês continuam sendo duas pessoas diferentes. Não é porque vocês são um casal que devem agir como uma única pessoa. A partir do momento em que você entra numa relação e se esquece de que você possui uma vida antes, durante (e quem sabe, depois), você acaba se esquecendo de viver para você e criando uma dependência emocional do outro. E você vai ter que respeitar a individualidade do outro também em situações diversas. Entender que o outro tem amigos que fazem parte da vida dele, entre outras coisas, é importante. 3) Você vai ter que ceder de vez em quando. É a velha história do consenso, onde você vai ter que entender que, por mais que tenham suas vontades únicas e diferentes do outro, vocês possuem uma vida a dois. Consensos farão parte da sua vida e ficar de mimimi só prova o quão imaturo você é para lidar com uma relação. 4) O sexo nem sempre vai ser maravilhoso (e nem tem a obrigação de ser). Você vai ter que ver algumas calcinhas beges na vida (cá entre nós, vejo problema algum nisso), vai ter que entender que o cara não está disposto, vai ter que lidar com TPM e terminar a noite na mão, vai ter que entender que uma broxada não significa que ele não te ama e assim por diante. Você vai ter que ser compreensivo num relacionamento, o que não implica em ser idiota. São duas coisas diferentes. 5) Você vai sentir vontade de ficar sozinho por algum tempo. E isso tem a ver com o princípio da individualidade já falado. Isso não significa que você não ame a pessoa e muito menos que o relacionamento está em crise. Todo mundo precisa de um tempo sozinho para dedicar a si mesmo. Você não precisava cuidar de si, não gostava de ler um livro, ir ao cinema sozinho, ficar em casa dormindo e outras coisas quando era solteiro? Então. 6) Você não vai mudar ninguém. No máximo, vai conseguir melhorar um pouco a pessoa de acordo com o que você considera melhor para você. As pessoas têm uma ideia de que podem mudar a essência do outro e não percebem que isso é um tremendo de um egoísmo. Se você gosta da pessoa, você pode adaptar as coisas e tentar conciliar outras no modo e na personalidade dela. Querer mudar alguém é como querer montar um boneco que atenda aos seus gostos. 7) É muito provável que a sua expectativa inicial não se concretize (e isso é até bom). Você pode se surpreender positivamente ou negativamente e, ainda assim, gostar de quem está com você. Não é porque a tua expectativa inicial foi frustrada, que significa que aquela pessoa não tenha outros atributos agregadores a oferecer a você. Você só tem que deixar de ser mesquinho e entender que as pessoas não são obrigadas a corresponder às suas expectativas (e por isso mesmo é que elas são suas e não de outras pessoas). Se souber lidar com isso, a metade dos seus problemas estará sanada. 8) E, por último, mas não menos importante: tatuagens de amor são coisas meio imbecis. Você tem 99% chance de se arrepender e ter que gastar dinheiro com a remoção e 1% de casar e achar a tatuagem brega dentro de alguns anos." Daniel Bovolento

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Desse jeitinho assim...

Só uma pessoa única como você para marcar tanto a minha vida em relativamente tão pouco tempo. Só você para embolar minhas ideias desse jeito, me bagunçar desse jeito, me deixar sem saber se quero voltar, avançar ou parar no tempo. Só você para me fazer sentir tão viva, porque só você me fez experimentar em uma só história quase todos os sentimentos. Só você e mais ninguém. Já tivemos tantas fases. Fases de não dizer, fases de se deixar envolver, fases de não saber mais como calar, fases de se perder e fases de se achar. E talvez esta seja a nossa fase mais gostosa até então, a fase que eu não quero nem pensar em te esquecer e já nem me lembro mais como era a vida antes de você. Nós somos muito fortes juntos. Enfrentamos os problemas, tudo e todos, e os nossos piores inimigos: nós mesmos. A teimosia e o orgulho pediram as contas, não querem mais saber da gente. E tudo o que eu sei neste momento, meio a tantas idas e vindas, é que eu faria tudo de novo. Valeu cada segundo de sofrimento e saudade se é para estar com você agora. Você, o meu jeito preferido, meu abraço preferido, meu casaco de moletom quentinho preferido, meu cangote preferido, meu beijo preferido. Você, a risada mais gostosa, as conversas mais gostosas e tudo o que eu mais gosto de gostar em alguém. O jeito que eu mais gosto de gostar de alguém. O jeito que eu mais gosto que alguém goste de mim. E tudo o que mais gosto, que é gostar coladinha contigo. Contigo, onde os dias poderiam durar 72 horas e os relógios pararem de funcionar. Nós dois, que fabricamos sonhos e já ficamos felizes só de pensar em realizar. Nossos planos, que como eu já ouvi dizer, são mais jurados que qualquer jurado de programa de calouro. E eu, que me flagro sorrindo sozinha em casa, no ônibus ou em qualquer lugar porque nada é capaz disfarçar a delícia que é lembrar de você. Você, que deixa meu coração descompassado, com saudade só de pensar no primeiro segundo que você for embora quando a gente se vir depois de amanhã. Você, que me dá essa sensação de que não há placas tectônicas que não se encaixem só pra gente ficar perto. Não há estrela cadente que não faça um pit stop em cima de nossas cabeças só para ver a gente junto. E eu só quero que a gente siga firme e forte, caminhando juntos para não precisar contar com nenhuma sorte, suspirando a vida sem ajuda de aparelhos. E que a gente consiga identificar cada oportunidade que o amor vai nos dar. E que a gente se baste, seja onde e como for. Eu amo o que você é pra mim. Eu amo amar você desse jeitinho, bem assim.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Paradoxo

Você e essa discussão de até aonde eu iria pra você ver que isso é amor. Acho que a gente nunca vai chegar num ponto comum quando fala sobre isso. Até quando eu abro a porra da porta do táxi pra te ver indo embora com outro sujeito qualquer que não seja eu, é amor. Altruísta e egoísta ao mesmo tempo. Eu sempre vou embora e sei que não posso te pedir pra ficar pra sempre me esperando numa sala de estar com um sorriso congelado no rosto. É a mesma coisa que te transformar em manequim com teias de aranha e aquele olhar triste das vitrines abandonadas da cidade. Não sou cruel e muito menos valente o suficiente pra lutar por você e desistir de tudo o que eu construí e o que você construiu individualmente. A gente se entende quando deita de costas no chão e fica lado a lado em silêncio olhando o teto. Você não vê a infiltração e as rachaduras da casa como eu. Você só vê um teto e uma respiração controlada e abafada do teu lado que pertence a mim. Eu sei que você é uma mulher que não se importa com os problemas mais superficiais da nossa relação e que você queria mesmo é que eu tomasse uma atitude e fosse atrás de você de vez, te segurasse antes de entrar em qualquer avião e te arrancasse um beijo daqueles que filme nenhum mostrou até hoje. Mas eu sou covarde e prefiro te amar de um jeito meio brusco e meio tolo. De um jeito que te deixa ir e ainda compra as passagens. De um jeito que não te prende a um lugar vazio porque eu nunca pertenci a lugar nenhum nessa casa. Eu abro mão de você de uma forma carinhosa até. Você me afaga e eu mato esse amor que você sente porque você nunca vai poder contar comigo direito. Não sei se é insegurança ou se é só coisa de homem com alma de menino. Não sei se vou ou fico, não sei se te mantenho por perto sabendo que posso te fazer sofrer ou se te faço sofrer por não te manter por perto. De um jeito ou do outro eu sou errado demais pra que você possa acreditar que te amo. Incoerente e sem nexo nenhum. Sem discussões. Mas é triste ver o brilho dos teus olhos quando a gente finalmente se reencontra depois de eu te ligar às duas da manhã pra dizer que tô chegando. Dessa vez o táxi tem destino apenas de ida. Você tomou coragem e mostrou que a menina dos seus olhos decidiu tirar umas férias e deixar uma mulher decidida no lugar. Enfurecida, machucada e completamente certa do que quer. Você resolveu ir embora de vez e se despedir da minha covardia. Justo. Também não gosto de gente indecisa que diz que ama e faz completamente o contrário. Meu jeito errado demais de amar podia ter matado nós dois. E espero que esse cara que você vai achar em algum lugar do mundo possa ter a sorte de te encontrar com o coração aberto e pronta pra outra. Eu sei que fiz um baita rombo e que merecia ser chamado de filho da puta pelo resto da vida. Mas é melhor assim. E você pode me fazer um baita de um favor, hein. Se algum dia te perguntarem que gosto é esse de sentimento morto nos teus lábios (esse gosto de saudades, arrependimento e decisão), você pode responder: “Simples: o meu grande amor me matou uma vez. Aceitar o novo amor que me abraça é uma chance de voltar a viver”. E que ele aceite o desafio de te trazer de volta à vida. Espero que você possa confiar quando o seu novo amor for puxar a cadeira. Não, ele não está abrindo a porta desse táxi para te deixar ir embora de vez. Não, ele não está abrindo mão de você pra sempre por algum medo estúpido que nem ele mesmo sabe explicar. Não, ele está sendo gentil. Mais gentil do que eu um dia poderia ter sido ao te prometer um abraço.

Não vale a pena

Quatrocentos e vinte nove dias e cinco horas mais dois minutos. O que você está fazendo da sua vida? Como se eu tivesse ideia do que eu mesmo estou fazendo da minha. A rotina das minhas retinas escancaram modismos e comodismos. Não era você que ia salvar o meu mundo e mudá-lo radicalmente em três minutos? Até que conseguimos aumentar esse tempo com paciência e desaprovação. Quando a gente vive com muita vontade alguma coisa, a mentira se torna real demais pra que a gente acredite que era só uma mentira. Ela constrói um mundo inteiro como se fosse um castelo de cartas. Prazer, rei de paus. A rainha de copas soprou o castelo, deu meia volta e nos sabotou. Eu te projetei um pouco. Mas essa confissão a gente só faz depois que já passou uns dias maldizendo e dizendo que a culpa é toda nossa. Existe uma sensação de poder em volta da culpa. A culpa foi minha, logo, não deu certo por minha causa. Eu mantive esse egocentrismo durante todo o tempo e agora eu me vejo nessa posição de controle que é fascinante. Você pode se assustar com a forma com que estou lidando com isso e me chamar de cruel. Mas eu acho que você que era cruel demais. Pelo menos eu quero me lembrar de você assim: cruel demais. Girar a maçaneta com tanta convicção e me dizer que eu matei os seus sonhos. Bobagem. Quem precisa sonhar quando se consegue fingir tão bem que é feliz? Você precisa de mim. Em todas as suas pinturas havia algo de mim. Esfreguei na sua cara outras mulheres como se elas fossem alguma coisa. Eu sou do tipo de perdedor que mantém um troféu em casa e se vicia em apostas. A maior delas foi você. Eu achava que conseguiria corromper essa sua coisa sonhadora e idealizada. Você era boa demais, sabe… Bonitinha demais, legalzinha demais, boazinha demais. Você tinha um conjunto certo demais. E isso sempre me enjoou em você. Mas cada um de nós pensa que pode mudar o outro para que ele se pareça mais com o que a gente espera. Ela vai conseguir romper isso e ser realista; vai conseguir reprimir o pudor e fazer uma lista; vai se deixar levar por mim e se largar de lado. Eu queria uma mulher feita para deixar de ser. Eu queria você assim: como eu quero. Com toda a intensidade e da maneira que eu acho melhor. Mas, porra! Você tinha que cismar em brincar com a minha paciência e se preencher como uma das suas telas. Eu queria você em branco, sem nenhum rabisco, sem nada, meu bem. Arte incompleta, mas você tinha talento. Só me provou no final. Mas não importa. Toda mulher precisa de uma lição e que essa lição venha de quem entenda de moldes. Você vai aprender a moldar os seus próximos amores agora. Todo mundo aprende. Basta que chegue a grande decepção amorosa da nossa vida que a gente aprende a ver os outros de uma nova forma. Eu queria discutir com você sobre o seu novo manual de instruções, mas você foi rápida demais. Precisava dizer que era pra você ficar e que a gente podia se destruir junto. Eu sempre gostei desse joguinho de quem fere mais e quem ama menos. Masoquismo puro, meu bem. É divertido, você vai descobrir isso. Projetei esse parasita dentro de você como um pequeno vírus que vai crescendo cada vez que algum deles chegar perto de você. Eu te programei para sofrer. Isso era o que você estava fazendo da sua vida quando resolveu depositar em mim a sua felicidade. Mas aqui fica a lição que eu tanto quis te ensinar: nenhuma pessoa é lugar de repouso. Tarde demais, meu bem. Você acaba de descobrir que a pena é muito dura para carregar sozinha. Mas, se quiser, eu te ajudo nessa. Se me deixasse falar, eu teria me despedido de vez. Você só virou a chave, virou a cara, virou o mundo e me disse que. É uma pena, mas você não vale a pena. Daniel Bovolento

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cobranças

Pedir um abraço, cobrar um beijo e exigir carinho não combinam com o amor. A cobrança aniquila com a possibilidade de oferecer e de receber o afeto. Como beijar depois de escutar "não me dás mais beijo"? Como transar depois de ouvir "não transas mais comigo"? O que é voluntário vai parecer obrigatório, o que é escolha vai parecer induzido, o que é vontade vai parecer condicionamento. Por que transformar a convivência em coleta de impostos? Será que não se está levando o trabalho para casa, a empresa para a casa, o demônio do cartão-ponto para dentro da carne? Qual é o prazer de pressionar, de impor resultados e regras, de controlar o que é para ser incontrolável? Por que difamar a única verdade que se tem?
É fácil perguntar, difícil é ouvir a resposta sem se mexer, até o final. É fácil atacar para aumentar a culpa, difícil é compreender sem defesas. Cobrar afeto é pior do que agredir fisicamente. Incha mais do que um tapa na cara. É cortar as palavras mais do que os lábios. Assume-se a condição de credor, como se o amor fosse uma dívida. Assume-se uma posição superior em relação ao cobrado. Uma posição hierárquica, de chefe reivindicando o cumprimento dos prazos. Não se cobra o que é espontâneo. Entra-se no solo movediço e insano do recalque. O recalque é uma carência que não conversa mais. É uma carência arrogante, cleptomaníaca, que furta do amor para gastar com a solidão.
Não estou me referindo ao ciúme. A cobrança por afeto não decorre do ciúme, da insegurança, mas se origina no excesso de segurança que beira o autoritarismo. Representa a posse, a mania totalitária de não permitir as imperfeições e desejos contrários. Ah, se a pessoa com quem amamos não está a fim de um beijo ela não me ama mais! Que exagero infantil. Toda hora se deseja ouvir 'eu te amo" como se o amor fosse chiclete para ocupar a boca. Talvez seja mais linguagem de sinais. Depende de reciprocidade, de atmosfera, do outro estar com a cabeça leve e descomplicada para fluir. Não depende só da gente. Nem sempre se está disposto a viver em voz alta. Há períodos destinados a sussurros e cochichos.
Não se pode amar por caridade ou por orgulho, senão cobraremos. Assim como é necessário diferenciar a expectativa do amor, a euforia da alegria, a depressão da dor, pois são sentimentos bem diferentes.
Deve-se tomar cuidado para que não seja criado dentro alguém que não existe fora. Ou criar fora alguém que não existe dentro. O amor não é versão de Windows que é atualizado a cada ano para girar mais rápido. O amor é lento mesmo.

Fabrício Carpinejar

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A fidelidade dos pássaros

O homem é um bicho curioso, sacrifica uma relação e parte para outra por ambição. Se casa cedo, pensa que faltou conhecer mais mulheres antes. Se casa tarde, acredita que quando solteiro havia mais chances de ser feliz. Homem é um bicho nostálgico. Nunca está satisfeito com o que tem. Fica enjoado com rapidez. Enjoa-se de si mesmo. Ao invés de melhorar e treinar com afinco, troca o técnico ou culpa a torcida. O homem cogita que é desfavorecido. Enquanto come olha o prato do outro. Deveria aprender mais com os pássaros. Um pássaro não morde vários frutos ao mesmo tempo, para descobrir o sabor de cada um deles. Não estraga os frutos pela ânsia da posse. Não quer ter todos, mas ser todos em um. Não destrói a árvore para fazer barulho. Ao pegar um fruto num dia, volta ao mesmo fruto no dia seguinte. É leal e econômico no afeto. Descasca o sumo de leve com o bico e toma cuidado para não assustar os insetos dentro. É devoto em sua escavação. Leva o alimento para os filhotes, abastece seus olhos africanos, engrossa seu ninho de estrelas e regressa ao seu ponto de origem. Um fruto durará uma semana em seus volteios. Até não sobrar nada, até a semente ficar lustrada de sol. O homem é um bicho insatisfeito. Deixa marcas, cicatrizes, tatuagens e provas de que esteve ali. Morde uma cesta inteira de maçãs sem sequer terminar uma delas, sem conhecer a alegria do pecado de se dedicar somente a uma delas. Pode amar para provocar ciúme, abandonar uma paixão para mostrar independência, trair para magoar, ferir para gerar autoridade. Interessa-se pela quantidade, por contar quantas mulheres teve, por contar quantas vidas perdeu. O pássaro é um bicho invisível. Não muda a ordem, é capaz de arrumar sua cama mesmo hospedado em hotel. O homem deveria observar mais os pássaros. Eles mordiscam os brincos das árvores e não derrubam as orelhas. Não precisam de platéia para matar a fome. São concentrados, não se dispersam na avidez. Os pássaros circundam, namoram, seduzem a fruta antes de pousar. Batem as asas com força para depois descer o próprio corpo flanando. Têm imaginação. A imaginação hidrata e faz a saliva subir. Um romance sem imaginação é livro técnico. Um amor sem imaginação é manual de geladeira. Um homem sem imaginação é um bicho esquisito. Ao transar sem imaginação apenas arruma sua gravata no espelho. Ao mastigar sem imaginação vai apoiar os cotovelos na mesa. Ao abraçar sem imaginação carregará garrafas vazias. Um homem sem imaginação é um bicho morto.

Fabrício C.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ciladas

Quando tua namorada ou namorado diz que podes confiar e contar, que nada mudará na relação, é mentira. A sinceridade te inspira a abrir os segredos para te jogar em seguida na parede. O amor é um jogo de convencimento e persuasão que termina invariavelmente em desconfiança. A pergunta que é feita por ela ou por ele de modo inocente não é uma pergunta, quem dera, pouco guarda da modéstia de uma pergunta, que aceitaria a contrapartida sem ofensa. A pergunta é uma suspeita. Não se deseja uma resposta, e sim "a resposta". A resposta deve somente confirmar uma evidência. A resposta é a evidência que estava sendo cavada.
Sigilo não existe. Quem guarda segredo apenas fingiu que não falou. A diferença é que alguns fingem bem. A pessoa pede a franqueza e afirma que tudo aceitará, que tudo permitirá, para julgar e atacar quando descobrir tudo. O charme inicial e a caridade do gesto são ciladas. Entra-se em uma investigação, não em uma discussão e diálogo. No fundo, há a intenção de conspirar contra aquele amor, de atestar que ele ou ela não presta, de que foi um erro. É incompreensível verificar que o ceticismo surge nos melhores momentos, como a avisar que não pode ser verdade, que a felicidade errou o endereço. Em cada um pisca o dispositivo antifelicidade, detonado para expulsar a intimidade e possíveis alegrias.
Se alguém se torna imprescindível, a estima arruma um jeito e um pretexto para mandá-lo logo embora. Algo que ocorreu no passado mais longínquo vai afetar como se tivesse acontecido há poucos minutos. Se a mulher fala que já trepou com três homens ao mesmo tempo, o cara concluirá que ela é promíscua e terá medo de ser apresentado aos antigos parceiros em alguma festa. Amar é uma paranóia interminável, porque não se tem aquilo que se é e não se pode ser aquilo que se tem. Difícil encontrar no amor o meio-termo, que não resulte em posse, muito menos em indiferença, que não desemboque em obsessão ou em tolerância. Desde quando não se pode ter passado e experiência? Não dá para compreender que casais acreditem que o par tem que ser um objeto lacrado, um carro zero, inviolável. Se ela transa bem é que aprendeu com antigos namorados, é óbvio. E daí? Que bom. Ambos definirão o seu dialeto a partir de idiomas anteriores. Chega de autoritarismo, de transformar a casa em um campo de desmemoriados.
Não se fica generoso com amor, fica-se egoísta. Só se pensa a princípio no nome de quem ama para depois só pensar no próprio nome. O começo é um desapego irrestrito, o final é uma proteção absoluta. No início, há a renúncia em favor do bem-estar da nova paixão. No decorrer da convivência, passa-se a criar mecanismos de defesa para se afastar.
Os opostos se atraem, mas não conseguem permanecer juntos (os parecidos se repelem e ficam juntos). O que parecia maravilhoso e definitivo, a sedução da diferença, a atração de um continente desconhecido é substituído pela tentativa de moldar o outro aos seus gostos. O respeito desanca em dominação. Não importa que ele saía com os amigos, que jogue futebol, que tenha grandes amigas desde que ele deixe, pouco a pouco, de sair com os amigos, jogar futebol e perder de vista as grandes amigas.
Ainda com complicações, é possível ser casado com a memória. De maneira nenhuma com a imaginação. A imaginação é sempre solteira. Se o marido não liga, demora para chegar, é evidente que a imaginação o viu com duas ou três mulheres em meia hora. A imaginação não aceita a confiança, procura o pior para depois gritar que já sabia. "Eu sabia" é a frase mais irritante de todo relacionamento. Mostra arrogância e, o mais grave, sinaliza a certeza do fracasso.


Fabrício Carpinejar

Pássaros comem na mão

A minha dor, eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver. Pode ser com um calmante, um trabalho físico, um desabafo. Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas no armário, limpando a casa, xingando Deus, sei resolver. Ainda que demore, mas resolvo. O que não sei resolver é a dor do outro. Fico mudo, meu braço sobra, minha mão falta, minha boca treme algum vento sem força. A dor do outro não se comunica. Não dá não tira emprego. A dor do outro me isola. Tento uma brecha para falar, porém sinto-me intruso, incômodo, solteiro. Como uma casa em reforma. Toda dor só é compreensível no idioma da dor. Quem está fora não entende, não tem razão, não alcança sentido. A dor não busca conselhos, a dor busca a pele para colocar por cima, busca cicatrizar a ferrugem e a maresia. A dor do outro é pedalar com a respiração. A dor do outro me desfalca, me devassa, me faz duvidar que podia ouvir. A dor do outro é a minha dor mais pessoal, porque é indiferente a minha própria dor. A dor do outro é uma parada de ônibus sem ônibus porvir. Uma parada de ônibus para sentar e não ir. A dor do outro fica no lugar da dor, não suporta um passo além do círculo de sua lembrança fixa. A dor do outro tem a altura de um grito que não é dado para não desperdiçar a dor. A dor do outro não ri porque séria chega mais rápida ao fim da dor. A dor do outro não se empresta, é dor de osso, dor que não se enxerga de dia e não se enxerga de noite. A dor do outro é neblina com a roupa presa nos galhos. A dor do outro é uma escada sem mureta, sem apoio. Uma escada desigual como a cintura ao dormir. A dor do outro me esconde, me segrega, me empurra com os cotovelos para onde não desejava voltar. A dor do outro me pede ajuda para não ajudar. É severa como uma verdade antes da morte, severa como uma mentira depois da morte. A dor do outro é banal, irrisória e tola para os que não mergulharam em dor. A dor do outro é hipocondríaca e carente aos que não enterraram seus pés ao correr. A dor do outro é discreta pois os sons não se encontram na pronúncia. A dor do outro tarda para retornar a ligação. A dor do outro parafusa a lâmpada para quebrar. A dor do outro não usa agenda, não recorre ao diário, a dor do outro é escrita esquecida. Não se escreve na dor, se escreve para manter distância dela. A dor do outro não encontra dentes para mastigar. A dor do outro se mastiga com a língua. A dor do outro não consulta horóscopo, não requer meteorologia, a dor do outro não muda, é igual ao que não se entende. A dor do outro é caseira, pois sair de casa é levar a casa. A dor do outro é destelhada. A dor do outro é uma árvore avessa, uma alegria avessa, uma água que já estava na boca. A minha dor, eu resolvo. A dor do outro, não sei onde colocar, onde me colocar. Faço como minha avó Elisa. Quando alguém recusava um abraço, ela pedia para devolver. Devolver o abraço é a dor do outro.

Fabrício Carpinejar

Dar um tempo

Não conheço algo mais irritante do que dar um tempo, para quem pede e para quem recebe. O casal lembra um amontoado de papéis colados. Papéis presos. Tentar desdobrar uma carta molhada é difícil. Ela rasga nos vincos. Tentar sair de um passado sem arranhar é tão difícil quanto. Vai rasgar de qualquer jeito, porque envolve expectativa e uma boa dose de suspense. Os pratos vão quebrar, haverá choro, dor de cotovelo, ciúme, inveja, ódio. É natural explodir. Não é possível arrumar a gravata ou pintar o rosto quando se briga. Não se fica bonito, o rosto incha com ou sem lágrimas. Dar um tempo é se reprimir, supor que se sai e se entra em uma vida com indiferença, sem levar ou deixar algo. Dar um tempo é uma invenção fácil para não sofrer. Mas dar um tempo faz sofrer pois não se diz a verdade.
Dar um tempo é igual a praguejar "desapareça da minha frente". É despejar, escorraçar, dispensar. Não há delicadeza. Aspira ao cinismo. É um jeito educado de faltar com a educação. Dar um tempo não deveria existir porque não se deu a eternidade antes. Quando se dá um tempo é que não há mais tempo para dar, já se gastou o tempo com a possibilidade de um novo romance. Só se dá o tempo para avisar que o tempo acabou. E amor não é consulta, não é terapia, para se controlar o tempo. Quem conta beijos e olha o relógio insistentemente não estava vivo para dar tempo. Deveria dar distância, tempo não. Tempo se consome, se acaba, não é mercadoria, não é corpo. Tempo se esgota, como um pássaro lambe as asas e bebe o ar que sobrou de seu vôo. Qualquer um odeia eufemismo, compaixão, piedade tola. Odeia ser enganado com sinônimos e atenuantes. Odeia ser abafado, sonegado, traído por um termo. Que seja a mais dura palavra, nunca dar um tempo. Dar um tempo é uma ilusão que não será promovida a esperança. Dar um tempo é tirar o tempo. Dar um tempo é fingido. Melhor a clareza do que os modos. Dar um tempo é covardia, para quem não tem coragem de se despedir. Dar um tempo é um tchau que não teve a convicção de um adeus. Dar um tempo não significa nada e é justamente o nada que dói.
Resumir a relação a um ato mecânico dói. Todos dão um tempo e ninguém pretende ser igual a todos nessa hora. Espera-se algo que escape do lugar-comum. Uma frase honesta, autêntica, sublime, ainda que triste. Não se pode dar um tempo, não existe mais coincidência de tempos entre os dois. Dar um tempo é roubar o tempo que foi. Convencionou-se como forma de sair da relação limpo e de banho lavado, sem sinais de violência. Ora, não há maior violência do que dar o tempo. É mandar matar e acreditar que não se sujou as mãos. É compatível em maldade com "quero continuar sendo teu amigo". O que se adia não será cumprido depois.


Fabrício Carpinejar

Conversa séria

Pede-se transparência como se fosse fácil. Falar os assuntos com franqueza, esquecendo que existe a fraqueza por detrás. Conversar com os filhos abertamente, com o namorado abertamente, com os pais abertamente não é dizer tudo. Relação aberta é também não falar. A honestidade termina quando cai no constrangimento ou na vergonha. A conversa não pode diminuir o interlocutor, fazê-lo sentir culpado, ínfero, humilhado. Cito duas cenas de ilustração. Um amigo se masturbava no banheiro. Sua irmã mais velha pegou a cópia da chave e o flagrou no ato. Não bastando, gritou a sua colega de escola que o irmão estava batendo punheta. Pelo que sei, citou até o tamanho do pênis. É óbvio que o amigo ficou vexado a ponto de não olhar para suas calças durante um mês. É traumático confundir liberdade com intimidade. A linguagem não permite a clareza integral, muitas vezes não dizer é um modo de compreender. O escuro conforta e oxigena. Nada demais em se masturbar, eu faço, a maioria faz. Que ridículo seria o pai ou a mãe chegar do trabalho e perguntar: " filho, te masturbou hoje?" Abordar o sexo não é torná-lo uma religião, com minúcias extravagantes e irritantes. Hábitos são saudáveis desde que não transformados em caricaturas ou depreciados em manias. Não é justo apagar o sentimento da jogada. O amigo estava reagindo com a sua sexualidade de um modo espontâneo e natural. O problema não era dele, mas da irmã, que o retorquiu como se ele fosse uma aberração. Duvido quando sou convidado para uma conversa séria, sei que terei que enfrentar um novo trauma pela frente. Conversa séria é quando não existe o que expor, desembocando nos preconceitos e projeções distorcidas. "Olha, queria te avisar, meu filho, que é recomendável ter cuidado ao transar?" Não encontro saída de incêndio: ou desliza para o sermão, moralista e duvidoso, ou às censuras, intimidando a expressão. Não sugiro nenhuma conversa séria, com trilha sonora de filme de terror. Quero falar as verdades me importando com as verdades de quem eu falo, não sobrepondo as minhas verdades às verdades dele. Não sou zelador em vida das pedras dos dez mandamentos. É fundamental sair do meu ponto de vista para não ficar cego. Conversa séria pode ser divertida, imbuída de alegria e autocrítica. Recordo que a primeira vez que transei em casa sujei seriamente os lençóis. Não tinha noção do funcionamento da máquina de lavar. Passei um sufoco para me livrar do pânico: o que a minha mãe iria concluir? Escondi os panos no armário da lavanderia. Era patético esconder naquele canto, numa caixa de papelão, alguém perceberia a falta, porém quando estamos com receio realizamos as coisas mais absurdas. Minha mãe deve ter encontrado os lençóis (sumiram dali em três dias), lavado e não me comentou uma nuvem. Não me censurou, não me deixou culpado. Sua educação me protegeu e me inspirou a confiar nela. Não me vi como um animal acuado, e sim como alguém aprendendo a lidar com a vida. Relação aberta é também respeitar o silêncio.

Fabrício Carpinejar

A alegria é insônia

“Esquecemos com facilidade o que não queremos compreender. Acreditava que as árvores só cresciam de noite. Não mudei de opinião. Os homens crescem dentro das árvores. Falo comigo, o que não significa que me escuto. Ainda não conheço as palavras. Complico minha vida para a morte ter o que pensar. Assim a entretenho. O frio quando chega de assalto torna as pessoas desajeitadas, deselegantes. É como se elas usassem uma roupa em cima da outra, sem muita concordância. Parece que estamos com casacos alugados. Não peço licença para pressentir. A lembrança tem uma cicatriz que não fecha pela insistência. A insistência é a pressa de se ver acabado. A pressa é curiosidade de não se acabar. Eu não cicatrizei minha vida. Não me culpo por me desperdiçar, muito menos procuro desviver o que vivi para estar de paz com a memória. Não há paz na memória. A alegria é insônia. Eu me perpetuo ao me consumir. Quem se adia não chega nem ao seu começo. A ferida é a altura da árvore, do homem dentro da árvore, que só cresce de noite.” F.C

Imprevisível

Comete bobagens. Não penses demais porque o pensamento já mudou quando se faz. O que acontece normalmente, encaixado, sem arestas, não é lembrado. Ninguém lembra do que foi normal. Lembramos do porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos declaramos em público. Comete bobagens. Disputa uma corrida com o silêncio. Não há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca, para que o teu futuro do passado não seja ressentimento. Demite o guarda-chuva, desafia a timidez, conversa mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho no rio. Mexe as chaves no bolso para despertar uma porta. Comete bobagens. Não compres manual para criar os filhos, para prender a ereção, para despistar os fantasmas. Não existe manual que ensine a cometer bobagens. Não sê sério, a seriedade é duvidosa, sê alegre, a alegria é interrogativa. Quem ri não devolve o ar que respira. Não atravesses o corpo na faixa de segurança. Grita ao vizinho que não suporta mais não ser incomodado. Usa roupas com alguma lembrança. Usa a memória das roupas mais do que as roupas. Desiste da agenda, dos papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem. Procura falar o que não vem na cabeça, falar uma música ainda sem letra. Deixa varrer seus pés, casa sem namorar, namora sem casar. Sê imprudente porque quando se anda em linha reta não há histórias para contar. Leva uma árvore para passear. Chora nos filmes babacas, dorme nos filmes sérios. Não esperes as segundas intenções para chegar nas primeiras intenções. Não digas eu sei, eu sei, quando nem se ouviu direito. Almoça sozinho para sentir saudades do que não foi servido em tua vida. Liga ao amigo sem motivo, lê o livro sem procurar coerência, ama sem pedir contrato, esquece de ser o que os outros esperam para ser os outros em ti. Transforma o sapato em um barco, põe na água com tua foto dentro. Não arrumes a casa na segunda. Não sofras com o fim do domingo. Alterna a respiração com um beijo. Volta tarde. Dispensa o casaco para se gripar. Solta palavrão para valorizar depois cada palavra de afeto. Complica o que é muito simples. Conta uma piada sem rir antes. Não chores para chantagear. Comete bobagens. Ninguém lembra do que foi normal. Que tuas lembranças não sejam o que faltou dizer. É preferível a coragem da mentira do que a covardia da verdade.


Fabrício Carpinejar

Desistir

Quando descubro que a pessoa com quem vivi mais de quinze anos traía, mentia e zombava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o dente é uma dor de osso, não uma dor da pele, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o filho não escuta, finge e faz o contrário do que se pedia, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que alguém tão próximo morreu e não falei nada, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que a realidade não é a mesma coisa que a vida e uma pode faltar e outra sobrar, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o amor parou enquanto eu andava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que tenho saudades mais do que não aconteceu do que aquilo que aconteceu, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que estou dispensado do emprego que julgava estável e definitivo, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que as tarefas, os compromissos, as reuniões me mantinham entretido porque não sei o que fazer sozinho, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que fiquei fora e não tive vida dentro, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que afastei todos que chegaram perto de meus segredos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que sou o único da sala, de um tempo, de uma lista, a não ser convidado para a festa, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que os amigos trocaram de telefone há décadas e não sei para onde ir, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que deixei de puxar conversa e me alegrar longe do final de semana, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que meus pais não me amavam como queria e só amavam como podiam, que minha infância foi inventada para não sofrer com a verdade, que fui um filho do acidente, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que falam em minhas costas, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não posso perdoar o que desconheço, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que saber demais é saber menos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que perdi minhas pernas, um braço, que perdi a visão ou a audição, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não sou igual nem aos outros muito menos ao que acreditei ser, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não acompanho meu raciocínio, que envelheci e não faço tudo sozinho, penso que não vou sobreviver. Mas a esperança é sempre mais teimosa do que eu. E justamente no final da desistência, um sol estranho, um cumprimento sem endereço, uma laranja úmida, uma foto desatenta, acredito que não é tarde e recomeço sem memória. Durmo e penso que foi um pesadelo, que exagerei, enlouqueci, que não tenho roupa para a tristeza, que fui duro e confundi a tolerância com a paciência. Saio debaixo do meu corpo. Tomo um banho mais longo na respiração. Provo o pão e o mel é sábio. Solto uma risada sem propósito, fico leve e caminho em telhas. Abro bem os olhos de cada palavra. Um dia antes de morrer, uma hora antes de morrer, alguns minutos antes de morrer e ainda não será tarde. E sobrevivo apesar de mim, depois de mim, antes de mim, em mim.

Fabrício Carpinejar

Coração grande

"Incrível como as vezes me engano. Ou, quem sabe, como o mundo me engana. Quem me enganou? Meus pais? Quem me criou e me transformou em uma adulta cheia de ilusões assim? Eu nunca sei se a "estranha" sou eu ou se as pessoas estão esquisitas demais. Algumas coisas que acontecem e viram rotina estão muito fora do que eu tenho como realidade. Isso vai de grandes a pequenas coisas, como pais estuprando suas próprias filhas ou jovens que não cedem espaço no ônibus para um idoso sentar. Trancam o amor e o respeito ao próximo a sete chaves no armário antes de sair de casa? Escondem-o embaixo do colchão ou o quê?
Sou eu quem valoriza demais coisas que não tem mais valor? Sou eu quem estou atrasada no tempo? Se sim, será que vale apena seguir em frente, encarar o futuro? Sinceramente eu tenho medo. Medo de que se torne bobagem o que eu penso que é essencial.
Há uns dias recebi a notícia de que uma tia-avó estava doente. Estava se sentindo muito indisposta e o corpo todo estava bem inchado. Após muitos exames descobriram o que a estava deixando assim. Palavras do médico: coração grande.
Confesso que me espantei e perguntei "e desde quando isso é doença?" Agora ate a medicina está macumunando com isso também? O que vão fazer, entupir a minha tia de remedio até que ela fique com o coração murcho?
Olha, eu não sei você.. mas eu sempre quis ter um coração gigante! Claro que um pequeno espaço é reservado para as pessoas com quem mais me identifico, normal, todos fazem isso. Mas eu sempre quis respeitar, admirar e fazer o bem para o máximo de pessoas que fosse possível. E é isso o que tento fazer diariamente, sempre achando que esse seria o jeito de ser uma pessoa melhor. Uma pessoa melhor para mim mesma, porque eu me sinto bem assim.
Agora, sem mais nem menos, descubro que isso é uma doença grave, que pode matar, que deve ser tratada às pressas e eliminada com brevidade. Descrubro que um coração grande pode fazer muito mal, causar dores terríveis e maltratar o corpo; que pode nos deixar entrevados em uma cama, sem poder sair pra dançar, beber um pouco com amigos, estar perto de quem a gente ama e que nos ama também. Descubro que um coração grande pode nos deixar internados em um quarto gelado de hospital, com aqueles travesseiros finos, aquela roupa de cama sem cheiro de nada, aquela janela de enfeite e a tal comida sem sal.
Eu prefiro continuar. Mesmo depois de saber de tudo isso eu prefiro continuar buscando a cada dia um coração enorme. Quem não estiver satisfeito, mude o nome da doença! Coloque nela um nome bem complexo, e se possível duplo, daqueles que mal conseguimos pronunciar.. porque se minhas jovens irmãs escutam isso vão crescer achando que ter um grande coração é ruim. Já pensou, Doutor?


Tia, é claro que eu torço para sua melhora, que todos os sintomas passem, mas não quero que seu coração diminua. Dentro dele eu me sinto confortável, eu danço, brinco e canto. Não quero viver em um "coração quitinete", sem espaço, sem ventilãção, sufocada com o próprio amor. Meu big coração está esperando você e sua risada gostosa de volta."

Tayná Saes

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Explicações pela metade

Há tanta coisa que amei sem entender. Acho que amo para não explicar. Amo para deixar de me explicar. Amo para me contradizer de explicações. Eu me sinto difícil, um texto difícil, eu me sinto burro quando me leio. Cada vez mais burro. É a pressa de minha letra. Eu sou embaralhado de desejos, os desejos são dúvidas que o corpo responde e não explica. Responder não significa explicar. Explicar mesmo é quando dedicamos uma vida por uma pergunta. Mas quem faria isso? Já é penoso dedicar uma vida inteira para ter uma resposta. Se não entenderes o que quero dizer, estamos quites. Eu sou mais o desaforo do que o elogio. Somos todos vulgares, mas alguns são vulgares na hora certa e outros vulgares a toda hora. Uma mulher vulgar no quarto é muito educada para a memória. Um homem vulgar fora do quarto é muito educado para o esquecimento. Vulgaridade é como religião, quem reza sem parar não sabe nem mais para o que está rezando. Rezar exige esquecer de rezar. Rezo no automático e de vez em quando já estou pensando em amoras, em doces, em minha mulher dobrando o lenço, em pornografia. Sei lá, já estou orando para outra coisa que não a minha promessa. Eu rezo para lembranças emprestadas, alheias. Não se fica no mesmo lugar do pensamento nem para escovar os dentes. O pensamento migra. Um dos meus pânicos é chamar o garçom e ele não me enxergar. Levantar o dedo impulsivamente e ficar com o braço ao alto, sem contrapartida. Um braço erguido me faz ser insignificante, como um náufrago. O garçom olha para todos os lados, menos para mim. Ameaça virar o pescoço e o rosto não o acompanha. Sou uma parede falsa. Depois que se levanta o dedo, não adianta coçar o ouvido. Coçar o ouvido é mais feio do que não ser reparado pelo garçom. O garçom deveria ter sido aluno da minha professora no ensino fundamental. Alçava-se o dedo e ela chamava rapidamente meu nome. O nome faz a maior diferença quando não se entende o que se quer dizer. Há pessoas que somente escutam uma conversa quando seu nome é citado. Mas meu interesse não pode ser reduzido ao meu nome. Quanto mais se explica, mais se confunde. Como esclarecer o relacionamento no fim de noite. Acerta-se a primeira provocação e depois se erram as seguintes, tenta-se corrigir e nos atrapalhamos com as palavras. Confessamos o que não foi pensado e de vítima a agressor é um passo. Quantos casamentos ruíram pela mau uso dos sinônimos, apesar das melhores intenções do casal? Arrancar um pedido de desculpa custa caro. E a discussão do relacionamento não termina porque não se tem mais como escapar dela de uma forma digna, restando o choro ou o cinismo. Acho que amo para não explicar. Amo para deixar de me explicar. Amar é como uma porta giratória para uma criança. Ao empurrar a porta, a criança retoma o seu local de partida, não entrará no novo ambiente. Porque não há lógica em dar uma meia volta. Ninguém quer uma paixão pela metade, uma passagem pela metade, uma amizade pela metade. Porta giratória é um crime. Assim como todo amor. Ele me sugere que vou sair para fora de mim, porém no fundo eu fica mais preso em mim. Na verdade, giro para regressar ao lugar que sai. É complicado? Pensa então nas bolachas com recheio. Eu abria com cuidado cada uma delas, separava em dois blocos e raspava com os dentes o chocolate ou o morango. Havia tanta concentração para não quebrá-las antes de finalizar o ritual. Não admitia parar no meio. Virava um sonâmbulo da boca. Sempre me falaram que não é aconselhável acordar um sonâmbulo. O sonho sabe melhor o caminho de volta do que o próprio sonhador.

Antes nunca do que tarde

Não me desespero quando não recebo as respostas das perguntas que não fiz. Nem sempre estou preparado para escutá-las. A gente pergunta todo tempo mesmo sem usar as palavras. Tenho receio de gastar a linguagem e não sobrar para depois. Já disse verdades para pessoas erradas. Já disse erros para pessoas verdadeiras. Embaralhei tempos. Queimei etapas. Um diálogo que deveria ter sido travado agora já havia feito décadas antes no momento que não sentia. Quantas vezes me declarei sem pesar cada uma das expressões? A palavra é tão sedutora, que podemos empregá-la mesmo sem necessidade. Não ter necessidade é desperdiçar a própria força do que podemos dizer em seguida, com urgência. Eu cuido das palavras como quem sopra a comida. Não pode esfriar demais, nem adoecer o céu azulado dos lábios.

Fabrício Carpinejar

Desenho animado

Quando a gente se gosta, a gente cuida. Cuida mais do que devia. Gostar é se prevenir do desgosto. A gente nunca sabe o que é suficiente, a gente vai se doando, se gastando, sem pedir troco. A gente gasta mais do que se tem e corre atrás para imaginar o que não se viveu para não fazer falta na memória mais adiante. Quando a gente gosta, é um exagero de gosto, é falar para levar o casaco porque pode fazer frio, é chamar atenção sem motivo, é fazer escândalo no telefone em pleno trabalho. Quando a gente se gosta, a timidez fica sem chances de escapar. Quando a gente se gosta, o que não se gosta é suportado com gosto. Quando a gente se gosta, a gente diz que nunca mais vai repetir e repete, porque gostar não é promessa, é quebrar promessas com os dedos cruzados nos lábios. Quando a gente se gosta, os segredos são música sem letra, adivinhação de pernas na mesa. Quando a gente se gosta, somos personagens do gosto mais do que autor dele. Não mandamos no gosto, o gosto nos suporta. Quando a gente se gosta, a gente começa emprestando um livro, depois um casaco, um guarda-chuva, até que somos mais emprestados do que devolvidos. A gente dorme uma noite fora de casa, duas noites, até que a gente leva a casa para dormir com a gente. Gostar é não devolver, é se endividar de lembranças. Quando a gente se gosta, pratica-se a arte de não ficar calado. A arte de não ficar calado é bruxismo de gente acordada. Os dentes ficam com fundo de prato para soprar a comida. Quando a gente se gosta, a neblina faz o rio encurvar mais cedo. Quando a gente se gosta, há sempre um nome na aliança contornado de sabão seco. A aliança faz espuma de mãos dadas. Quando a gente se gosta, tudo é importante, as inutilidades ainda mais. Quando a gente se gosta, come-se a luz de boca aberta. Quando a gente se gosta, guardamos os botões caídos das roupas como brincos. Quando a gente se gosta, a gente recomenda a nossa idade como a mais sábia. A gente gosta de ter razão, mas não ter razão só aumenta o gosto. Quando a gente se gosta, levar o lixo ou conferir se as portas estão fechadas é uma longa negociação de gostos. Quando a gente se gosta, separamos o feijão em uma bacia com água e ficamos com pena dos grãos debochados e incluímos juntos para a fome não ver. Quando a gente se gosta, é natural até se gostar menos para reservar lugar a quem gostamos.

Fabrício Carpinejar

Bolinhos de chuva

"A gente se cobra tanto que esquecemos de fechar a porta. Deveríamos nos pressionar menos. Aceitar que esqueceremos sempre alguma coisa a sair, de que é natural não se lembrar de tudo, de que não adianta se explicar, o melhor é viver sem sinalização. Tão simples. Extraviei a ingenuidade e não coloquei nada em seu lugar. Talvez minha ingenuidade fosse comer bolinho de chuva no sábado de tarde. Ingenuidade é quando temos vó para fazer nossos desejos. Depois, maduros, nossos desejos são bem mais difíceis. O cotidiano poderia ser mais líquido, menos temeroso. Trabalha-se para conseguir reconhecimento que se perde dentro de casa. Fica-se com a família para conseguir o reconhecimento que se perde no trabalho. É necessário pular do jogo de compensações, se permitir não ser bem informado, não saber o que acontece, não depender do tempo para definir o que fazer no dia. Ler um livro que não é lançamento. Ler uma revista velha de consultório de dentista. Cortar o cabelo diferente. Escolher um filme no escuro. Fazer palavras cruzadas com ajuda dos resultados. Tomar a cerveja da visita que não apareceu. Ligar para amigos sem um pretexto. Permanecer de bobeira, ingenuamente de bobeira. Não estocar, não se guardar, não se esconder, não esperar o pior, não xingar. Compreender que o outro pode estar falando a verdade, mesmo que a verdade não seja o que gostaríamos de ouvir. Tanto que recebi uma mensagem de um amigo que fala do distanciamento adulto, do isolamento adulto, que não é solidão, que é algo que nos adia até nos adiar novamente:
"Chega uma hora em que não nos esforçamos mais para aprender. Aprender o que o outro quer, o que o outro precisa. Tudo se torna causa própria: minha família, meus amigos, meu trabalho, minhas festas. E o resto que se dane. Eu lembro de minha irmã mais velha. Era ciumento quando pequeno. Interrogava seus namorados como um cão de guarda. Ela levava na brincadeira e ria da implicância. Eu me dava tão bem, não precisávamos ter alguma coisa em comum. Se ela chorava, eu não queria saber o motivo. Eu me juntava a ela como um pacto até ajeitar seus olhos. Eu dedicava minha vida para ouvi-la. Ela dedicava a sua para me entender. Ela me levava em seus passeios, por mais tedioso que é ter o irmão mais novo colado. E não sentia que estava incomodada, ela tinha orgulho de me apresentar o mundo. Alargou os padrões domésticos. Saiu de casa cedo, fez minha primeira festa aberta aos amigos, me ensinou a dirigir, me deu dicas de como me comportar com as mulheres (o que convenhamos, não deu muito resultado). Passou em primeiro lugar na universidade, era inteligente a ponto de tornar qualquer sucesso dos seus irmãos um tremendo esforço. Ela fazia as provas e os testes sem estudar. Nada parecia complicado. Ela cresceu, teve filhos, casou. Eu cresci, tive filhos, casei. Hoje não há alegria, não há comoção das diferenças, não há compreensão. Não nos prendemos ao telefone e acabamos estranhos, indiferentes, medrosos. Ninguém comemora o sucesso do outro. Nossos filhos não brincam juntos. Não dividimos casa na praia. Como telegramas, só nos comunicamos nas tragédias. As diferenças sociais e de classe nos afastaram. Ela apenas fala de trabalho e viagens, do que gasta e não gasta. Eu não sei o que falar. Cada um procura sua mãe para reclamar, que é a mesma."


Fabrício Carpinejar

Onde eu errei?

Em um dia sem outro igual, um homem joga tudo para o ar, a família, a mulher, a casa, para depois voltar em paz. Não tão previsível, a mulher explode todo dia para não se acostumar com a paz. O homem não abandona tudo sozinho. Arruma um cúmplice, alguém para o elogiar e suportar a autocrítica. A mulher só depende de si porque assim a ensinaram e, quando parte, dificilmente retorna. "Onde eu errei?", essa é a pergunta banal depois de todo fim de relacionamento. Eu a faria do seguinte jeito: "onde eu acertei?" Conhecer as falhas não vai ajudar em nada o exame, pois somos tomados de complacência e não há como garantir o discernimento sobre o que representamos. Enfrenta-se uma intoxicação, o sacrifício da verdade pela vaidade. O orgulho toma o lugar do que seria de direito da dor. Perdoa-se a si para não perdoar o outro. Pior: tenta-se desmerecer o par que rompeu para que ele perca a credibilidade de contar teus erros, teu egoísmo, tua falta de vocação. A intimidade que tanto nos orgulhávamos será o motivo de pânico depois. Nossa facilidade em enxergar o estrago que fizeram com a gente não nos permite enxergar o mal que podemos ter feito. Fica-se irritado com que deixamos de ser mais do que daquilo que fomos. Toda a relação acaba quando a memória do que não aconteceu é maior do que o desejo. Quando se escolhe desacontecer para agradar as conveniências da mulher ou do marido, ajustando os amigos e os conhecidos a uma prévia lista de selecionados inofensivos, que não questionam, muito menos discordam. Podando-se o entorno e as circunstâncias, a transparência escapa. Nenhum homem, nenhuma mulher consegue ser doméstico em turno integral. Lembrar é falar, antes de escutar. Se escutássemos a recordação, ao invés de legendá-la ou rascunhar datas, poderíamos ter sinceridade com que passamos. Os casais se contentam com a lealdade, nunca chegando a atingir à fidelidade. Ensinaram-me que ser homem era um trabalho. Tinha que me devotar como a um emprego, que deveria aprender a dirigir cedo, a namorar com indiferença, a mijar nos muros, a responder à realidade com força e persuasão. Meus amigos perderam a virgindade em casas noturnas e saíram de lá como uma missão cumprida. Como uma circuncisão, a formalidade de um objetivo. Como uma manada que aprende a correr sem duvidar do corpo. Ensinaram-me que deveria amar também como um trabalho. Fazer família significava mais uma tarefa de ser homem. Eu rompi comigo, nunca mais regressei, nunca mais me revi. Existe a percepção de lembranças solteiras, restos e emoções que nunca foram casadas ao longo de uma vida a dois. Dói constatar que algo da individualidade não foi tocado, descoberto e permaneceu inatingível. Talvez nem mais saibamos como chegar a esse arquipélago desconhecido. Dói verificar que o que se levou do casamento foram dez quilos a mais.


Fabrício Carpinejar

Não acredito em quem não se desacredita ao menos uma vez

Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte.
Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não olha para sua mulher e teme não merecê-la. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito em quem é tão cheio de si, com tantos medos dos outros. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo não possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.


Fabrício Carpinejar

Perdi mulheres

Perdi Alice porque ela me achou baixo. Perdi Lisa porque minha língua mancava na infância.
Perdi Rita porque era seu melhor amigo. Perdi Gisele para meu melhor amigo.
Perdi Renata porque ela mudou de estado. Perdi Ivana porque escrevi cartas de amor e não tive coragem de mandar.
Perdi Maria por um apelido. Perdi Fátima quando pichei o muro de sua residência. Perdi Caroline porque fumava.
Perdi Sandra ao perder seu livro de Português. Perdi Débora ao pedir cola. Perdi Rosa pela asma.
Perdi Cristina pela catapora. Perdi Rose porque troquei de escola. Perdi Josélia por não aprender inglês.
Perdi Viviane porque não jogava vôlei. Perdi Marisa na parada de ônibus. Perdi Carla ao buscar cerveja.
Perdi Cristina quando demorei a dançar. Perdi Cristiane por um surfista na praia. Perdi Estela no fim de uma festa.
Perdi Bruna ao atravessar a rua. Perdi Luciana por não telefonar. Perdi Laura ao me casar.
Perdi Ângela por ela estar casada. Perdi Márcia por não insistir. Perdi Mariana por insistir.
Perdi Sonia na fila do banco. Perdi Marta por não puxar conversa. Perdi Cíntia ao ir ao banheiro.
Perdi Lisiane por sono. Perdi Lisa por ressaca. Perdi Manuela pelo mau humor de manhã.
Perdi Amanda por insegurança. Perdi Janete por excesso de confiança. Perdi Bárbara em um filme polonês.
Perdi Bianca pela falta de cabelos. Perdi Fernanda porque ela não gostava de barba.
Perdi Janete pelo jogo de futebol. Perdi Dulce por ciúme. Perdi Teresa por duvidar dela.
Perdi Gabriela por criticar suas músicas. Perdi Fabrícia pelo nome parecido. Perdi Paula ao odiar seus pais.
Perdi Deise para meu irmão mais velho. Perdi Cátia para meu irmão caçula. Perdi Denise ao não segurar sua mão.
Perdi Ester pelo atraso. Perdi Flávia porque ela queria ter filhos.
Perdi Tamisa porque eu queria ter filhos. Perdi Tânia quando ela trocou os graus de seus óculos.
Perdi Joana para sair com os amigos. Perdi Milena por fazer pouco caso de sua dor.
Perdi Geórgia ao comer de boca aberta. Perdi Regina pela solidão. Perdi Vitória por fofoca.
Perdi Jordana por não suportar discutir o relacionamento. Perdi Lídia porque ficava em casa.
Perdi Beatriz porque não voltava para casa. Perdi Elisa porque envelheci a fé.

Perdi mulheres pelas dúvidas que recebi de minha mãe e deixei para resolver depois.
Perdi mulheres pela teimosia em antecipar as falas. Perdi mulheres por acreditar que eu amava o suficiente.
Nunca é suficiente. Perdi mulheres ao mentir que não trairia. Perdi mulheres para me fazer de vítima.
Perdi mulheres porque em algum momento não estava em mim e coloquei travesseiros debaixo da coberta e fingi
dormir enquanto fugia.

Perdi mulheres por descuido. O homem é um descuido.


Fabrício Carpinejar

Conte-me o final dos filmes

Conte-me os finais dos filmes, eu não me importo. Eu esqueço os finais dos filmes. Nunca guardo o que acontece no enlace. O final do filme é o menos importante. Não entendo como embaralho os finais como se fossem começos. Minha memória não é fotográfica, ela corre a letra e não me entendo depois. O que eu fiz com os finais dos filmes? Os livros me influenciam e não me deixam concluir. Não posso concluir o que adivinho. Eu transformei os finais dos filmes em livros que não escrevi. Gosto que me digam o final antes de assistir o filme. Eu vou esquecer assim que assistir. Conte-me o final de minha vida, eu não me importo. Ciganas, fadas, bruxas não me apavoram. Não vai mudar o que farei. O final da vida não altera meu endereço. Não altera a fome que havia na vida. O ácido da boca. A hortelã da boca. O susto de estar errado. O acerto inesperado. Não vai alterar a ordem da rotina, a ordem da minha higiene: se tomo primeiro o pente, depois a navalha, depois a escova, depois o cortador de unhas. Não vai alterar minha dieta, minha receita médica, a cor de minha língua. Não vai alterar as sete quadras que atravesso para chegar ao banco, o modo de discordar da luz. Não vai alterar o cheiro da grama com a chuva. A impureza dos ouvidos. Não vai alterar a reposição da aguardente no bar. O suor das árvores. A manchete do jornal que não lerei. Conte-me o final do livro. Não vai alterar o desejo feito de começos. O começo do desejo no desejo. As tardes lentas do domingo. Os cabelos lentos da filha. Não vai alterar o modo como viro a página, o modo como troco de assunto. Não vai alterar a floresta reduzida a um ninho. O ninho reduzido a uma asa solteira. Não vai alterar a evaporação das uvas. O número de amigos. Não vai alterar o horário das missas, dos cinemas, do nascimento. O final do livro não vai alterar o autor e sua insuficiência. Não vai alterar o que não se enterra no final.


Fabrício Carpinejar

O que um homem quer?

O homem não quer nada, quer descobrir o que quer no meio do caminho. O homem não quer ser elogiado em excesso, senão pensa que é deboche. Quer dormir por nocaute, não por escolha. Quer viajar o suficiente para não voltar a ser ele mesmo. O homem quer chamar atenção em público, ficar quieto a dois. Não quer o meio-termo. Quer falar mais do que devia, calar mais do que podia. Não quer se explicar quando está errado. Quer ser explicado quando está certo. Quer magoar sua mulher criticando a sogra. Quer se magoar provocando ofensas. Quer concordar para resolver depois. Quer surpreender com o número errado. Quer ter a razão quando falta o desejo. Quer jantar com calma, almoçar rápido. Quer o passado perto como um abajur. Não quer mistérios, quer segredos para contar aos amigos. O homem quer um violão para esconder suas dores. Quer sair para poder voltar. Quer conversar de noite para diminuir a culpa. Quer uma gaveta para amontoar a infância. Quer mostrar disposição quando está cansado. Quer consolar para evitar o choro. Quer sexo quando fala em amizade, quer amizade quando fala em sexo. Quer se duvidar ao extremo para se confirmar em seguida. Quer pescar para mostrar paciência. Quer o emprego do outro, o prato da outra mesa. Quer fingir que sabe o que não entende. Quer entender durante a conversa. Quer fazer sofrer o que ainda não sofreu. Quer chorar e soluça. Quer amar sem começo. Quer casar sem papel. Quer ter um confidente para não se trair. Quer rir alto sem trocar a marcha. Quer usar suas roupas até gastar. Quer ter seus lugares prediletos. Quer privacidade em banheiros públicos. Não quer ser convidado a carregar peso. Quer dançar sem comentários. Quer beber sozinho sua ressaca. Quer escutar seu nome para voltar ao papo. Quer jogar futebol para diminuir a idade. Quer se contestar quando não há dissidências. Quer a última palavra. Quer ser desejado por vaidade. Quer a fama ainda que seja mentira. Quer chegar atrasado para não ficar esperando. Quer esperar na porta para não se arrumar. Quer fingir pressa para não desabafar. Quer pular o domingo. Quer se arrepender do que não fez. Quer ser esquecido do que ser vagamente lembrado. Quer que a mãe não conte suas manias e apelidos no jantar de família. Quer iniciar o que não terminou. Quer interrogar o próprio ciúme. Quer desistir das expectativas. Quer expectativas para não desistir. Quer receber visitas na hora errada. Quer telefonar para não dizer nada. Quer amar os filhos como se fosse um filho. Quer ser pai de seu pai. Quer orar nos ouvidos do mar. Quer ser ilegível para deixar dúvidas. Quer morrer de mãos dadas. Quer viver sem trégua. Quer adivinhar sua mulher pela respiração. Quer a aparência de uma aventura. Quer disciplinar a chuva. Quer ter uma árvore para atravessar o rio. Quer transformar seu dever em direito. Quer enganar sua fome. Quer escrever para não publicar. Quer arrancar os dentes do relógio. Quer esticar o elástico da terra. Quer reservar os olhos como uma mesa. Quer ser a paisagem da cidade durante o dia. Quer dominar seus impulsos. Quer se reconhecer na neblina. Quer seguir o rio que secou. Quer se aquecer no que não tem significado. Quer se sentir inteiro ao desfazer a bagagem. Quer dobrar o sol como uma carta. Quer que a água continue seu cabelo. Quer recuar para se repartir. Quer avançar para se repetir.


Fabrício Carpinejar

O que uma mulher quer?

Uma mulher não quer que o homem fique perguntando toda hora o que ela quer. Ela não quer ser definida, mas compreendida. Não pretende discutir relacionamentos no fim da noite, mas os filmes que ainda vai assistir, as expressões que ainda vai aprender. Uma mulher escolhe inúmeras vezes a roupa não porque é volúvel ou tem dificuldades de decisão, mas para ver seu corpo em seqüência. As roupas são o espelho, o espelho não é o espelho. O que a mulher quer está longe de significar um controle remoto, ela deseja que seus ouvidos sejam rezados com insistência, em voz e vela baixas. Ela deseja que o homem adivinhe seu desejo. Que fale palavras rudes com ternura, que fale palavras ternas com violência. Que a paixão seja inventada, não datilografada em sinais e segunda via. Porque quando uma mulher goza sai de seu corpo, o homem fica em seu corpo a assistindo. O que um mulher quer é visitar a mãe sem medo da mãe. Falar com o pai sem medo do pai. A mulher quer a inocência do medo da infância. O que uma mulher quer é uma piada que a faça rir bonita, não uma piada que a faça rir de qualquer jeito. O que uma mulher quer é que o homem feche a porta de noite para ela abrir de manhã. Ela quer ter um filho para não se matar de amor por uma única pessoa. Uma mulher quer a esperança de não ser ela, ao menos mensalmente. Ela quer falar com as amigas o que um homem não sabe ouvir. Ela não quer que o homem mude de assunto porque não o interessa. Quer que o homem entenda que nem sempre ele é seu assunto preferido. Ela quer dançar para outros homens para chamar o seu para perto. Ela quer dançar sem pensar que dança. Uma mulher quer ser restituída de seus erros. Uma mulher quer percorrer a saudade e não se abandonar. Uma mulher quer Deus estendido como uma praia vazia. Uma mulher quer ser perfeita dentro de suas imperfeições, detalhista em suas expedições pelas sobrancelhas. Uma mulher quer conversar para se perseguir. Quer ser olhada nos olhos, na cintura dos olhos. Quer que a janela se incline como um girassol. Quer ser a paisagem de sua cidade à noite. Quer ir vivendo o que não entende. Quer dizer o que sofre para não sofrer do mesmo jeito. Uma mulher quer descer do mundo em movimento. Ter sonhos eróticos para embaralhar as lembranças da semana anterior. Criar uma outra mulher dentro de si que a contraponha. Que seja legível como um pássaro no escuro, um rio no escuro, uma fruta na água. Uma mulher quer se sentir pressentida ao andar de costas, nunca chamada ou assobiada. Uma mulher quer descansar com afeto, sem intenções outras, ter os cabelos alisados e um colo, para perdoar o dia. Ela quer que o homem a ajude a enterrar o passado com direito a uma cruz e um nome. Que a ajude a desenterrar o futuro. Ela quer andar no mistério, mas de mãos dadas. Ela quer ser surpreendida com um beijo nos ombros, agradecer um espanto. Ela quer que a felicidade não seja permissão. Ela quer conferir se tudo vai dar certo para errar com vontade. Ela quer descobrir o que a vida quer dela nem tarde ou cedo demais. Ela quer que o homem feche as antigas relações e os frascos do banheiro. Uma mulher não quer que o homem fale por ela, como eu tentei fazer.


Fabrício Carpinejar

sexta-feira, 30 de março de 2012

Me dá 5 min?

"Hey você, senta aqui... precisamos conversar.

Eu sou exagerada, sabe? O que o tamanho não me agraciou, o exagero se esbaldou.

Tenho mesmo ainda a mania de me atirar nas coisas e o impulso ainda me controla muitas das vezes. Sou ansiosa, hiperativa e sim, eu crio expectativas. Sei lá porque. Talvez o sistema em que eu tenha sido criada tenha sido um pouco diferente, onde geralmente se você está na mesma estrada, era normal e comum quem estava do seu lado dividir a água quando o sol se tornava escaldante demais. É, amigo. Eu sou assim. Eu crio expectativas. Não vou te listar todos os defeitos porque tenho uma auto-estima pra cuidar, mas eu queria te dizer algumas coisas.

Eu tenho pena da nossa geração, sabe? Uma geração cheia de grandes corajosos, que falam o que pensam e nunca o que sentem, quando e se é que sentem. É todo mundo tão armado. Sempre com 5 pedras na mão prontas para atirar caso seja preciso. Uma guerra fria discreta e constante.

Amizades? Ah, mudaram tanto a definição dessa palavra que hoje em dia nem sei descrevê-la com precisão.Somos corajosos e medrosos. Levantamos muros e não permitimos que ultrapassem nossa linha de proteção.Matamos, dia após dia, nossos sonhos, nossas ilusões necessárias para que a força pra lutar por algo bom e que realmente gostemos, aconteça. Ainda bem, porque sonhar demais é tão nocivo quanto não ter sonho algum.

Mas, sabe, seu moço... eu quero te contar que eu ainda quero acreditar. Acreditar em uma sociedade onde as pessoas se deem mais as mãos que murros. Numa relação feita de um fazendo banquinho para o outro transpor os muros. É um defeito grande, eu sei. Mas é quase mais forte que eu.Eu sei que políticos corruptos jamais deixarão de existir e que a maldade também não, mas aquele ditado "O mundo muda quando a gente muda" não me sai da cabeça.

Então, moço quero te contar que no meu mundo a gente pode conversar e rir sinceramente. Pode me falar da sua vida e dos seus problemas. Pode se indignar pela alta dos impostos, pela teia de corrupção do Cachoeira e por tantas outras coisas que você quiser. Até pela maconha não ser liberada até hoje. Não te garanto concordar com tudo, mas garanto respeito com cada uma das suas inquietações.

Eu sei que não existe problema grande ou pequeno. Existe problema grande na proporção à vida de cada um. Aqui, amigo, você vai poder me cumprimentar amanhã caso nos encontremos depois de uma noite de risadas. Eu vou te dar um sorriso de "oi" de volta. Aqui, amigo, vai haver sempre uma meio intensa, meio louca, meio santa, instável, estável, feliz, infeliz de ouvido e coração aberto pra te ouvir quando sentir que da sua boca parte palavras sinceras, ainda que ásperas.

Então, seu moço, não me iniba. Não mate o resto de fé que há em mim no ser humano. Não me deixa vê-lo recuar quando alguém em você chegar sendo sincero a valer. Não seja você o portador do mal da censura do eu único que há em cada um, inclusive em mim.Agora, se você quiser ficar... saiba que há alguém aqui disposta a ser feliz. Eu quero me permitir, se você também quiser, está convidado... pode ficar por aqui."

(Camila Lourenço)

O que faz uma mulher se apaixonar?

Não. Não é aquele elogio caprichado que você dará ao vê-la. Muito menos o fato de você abrir a porta do carro para que ela entre, ou puxar a cadeira para ela se sentar. Tá, você terá êxito em tudo isso. Vai deixar uma boa impressão e com um pouco mais de investimento, dependendo da garota, vai conseguir levá-la pra cama. Se é só esse seu objetivo, pode parar de ler por aqui. Agora, se o seu interesse é saber o que faz as mulheres se apaixonarem, meu bem, vou te contar a fórmula e você rirá do quanto é simples: "Ser sincero". Isso, simples assim, seja sincero, conte-nos seus defeitos sórdidos e nos permita saber quem são de fato, vocês.
O cara chega com aquela cara toda de humano, de gente que erra como a gente, e numa conversa solta sem querer e envergonhadamente seus defeitos, pronto, meio caminho andando pra fazer a interlocutora pender pra paixão. Claro que também não é dizer os defeitos e achar que tem o aval de sair cometendo todos os desatinos possíveis depois e ainda achar que ela cairá a seus pés, e óbvio que tudo isso vem também com um conjunto de coisas, e a boa convivência é uma delas. Por exemplo, se você é um bruto grosseirão não é admitindo que irá conquistar alguém, será mudando mesmo.
Eu me lembro do dia em que disse pro melhor cara que conheci até hoje que ele era isso "o melhor cara que tinha conhecido na vida até aquele momento". Ele engoliu em seco e respondeu "Menos, menos, beeeeem menos... Sou péssimo, cheio de defeitos, egoísta, melancólico e mais um monte de coisa terrível.*" e eu tive mais certeza ainda, ele era mesmo.
Mulher tem um gosto estranho, é estranha. A gente gosta de gente como a gente, que tem medo também mas que sabe escondê-lo muito bem atrás de um bom sorriso de canto de boca.
Nada de promessas e jóias caras. Nada de buquês. Claro que tudo isso ajuda, mas não é isso que fará alguém amar você até o fim e morrer, se preciso for, um dia por você. É você, do jeito que é.
A gente sabe que hora ou outra vocês irão chegar mais tarde, vão passar no bar com os amigos, vão nos trocar por uma tarde de futebol e vão nos obrigar a engolir muitos amigos chatos, mas, é por serem vocês, por terem nos mostrado vocês, por terem ousado tirar a casca e dizer "esse aqui é o que realmente sou" que fará com que amemos vocês apesar de tantos "apesar de..."
Então, vamos fazer um trato? Nada de ficar contando vantagem do que você tem ou do quanto ganha ou do quanto você é o cara. Homens vivem reclamando que quem gosta de homem é viado, porque mulher gosta é de dinheiro. Talvez vocês estejam jogando o foco de luz nos motivos errados para serem aceitos e quem sabe até, amados.
Nem que seja um affair de uma noite só, se permita ser você e se surpreenda com o que acontece. Quem fica apesar e pelo que você é, meu amigo, muito provavelmente ficará para sempre, de um jeito ou de outro.


Camila Lourenço

quarta-feira, 7 de março de 2012

Quem realmente permanece

Eu gosto de quem facilita as coisas. De quem aponta caminhos ao invés de propor emboscadas. Eu sou feliz ao lado de pessoas que vivem sem códigos, que estão disponíveis sem exigir que você decifre nada. O que me faz feliz é leve e, mesmo que o tempo leve, continua dentro de mim.
Eu quero andar de mãos dadas com quem sabe que entrelaçar os dedos é mais do que um simples ato que mantém mãos unidas. É uma forma de trocar energia, de dizer: você não se enganou, eu estou aqui. Porque por mais que os obstáculos nos desafiem o que realmente permanece, costuma vir de quem não tem medo de ficar. "

Fernanda Gaona

Inteiro

Eu sou da teoria que precisamos de alguém que já venha inteiro. Porque a pessoa que vem inteira sabe respeitar espaços, a pessoa que se sente completa aceita que você não é igual, e principalmente, a pessoa que aprendeu a totalidade sozinha sabe que dividir algo com você não implica em nenhuma perda para ela.

Fernanda Gaona

Sentimentalmente ativo

Na era da geração auto-suficiente ser sentimentalmente ativo é um privilégio. Na geração em que a aparência vale mais que mil palavras, colocar o coração pra funcionar é quase artigo raro. Ponto para aqueles que “sobreviveram” as atitudes egoístas e que não se venderam a nenhum ato mesquinho. Sorte de quem enche a boca pra dizer o que sente e acende os olhos pra comprovar que é verdade. Graças a esse seleto grupo sentimentalmente ativo, o amor ainda resiste e é praticado em todos os gêneros e de todas as formas. Porque a boa vontade das pessoas até pode ficar inativa, mas aqui, o altruísmo é quem vai comandar.


Fernanda Gaona

quinta-feira, 1 de março de 2012

Meus livros

Cheguei a conclusão de que, para nos entendermos e, quem sabe, entender o que se passou com o que tínhamos juntos, basta olhar para como agimos com nossos livros. Você enrola a mesma leitura há mais de seis meses. Começou a ler porque me viu devorar o livro e amar cada página e resolveu que seria bom pra você amar a m...esma coisa que eu. Resolveu esquecer os livros que estavam te esperando ansiosamente na estante e ler primeiro o que você pensou que deveria gostar. Enquanto isso, eu ganhei de você apenas livros que eu já planejava porque você sabia que isso me valia mais do que qualquer outro presente. Nenhuma novidade, opinião formada e, mesmo assim, muita vontade de mergulhar em todos eles ao mesmo tempo, decorar as melhores partes de cada um e dobrar a pontinha das folhas que eu não queria esquecer nunca mais. Com a gente foi a mesma coisa. Você enrolou, horas esquecia o livro na mochila, horas em cima da cômoda. Cômodo. Você não leu nem os livros que queria e nem terminou a leitura que começou pra me agradar. E eu, amando tudo o que vinha de ti, sem perder a minha essência, fui lendo tudo ao mesmo tempo, sublinhando as melhores partes, escrevendo em um papel os parágrafos mais bonitos para depois poder te mostrar e saber se você concordaria. Hoje eu preferia que você odiasse meus livros, mas me contasse quais são seus autores favoritos, quais os títulos que sempre te chamaram atenção. Eu preferia a verdade, mesmo que fosse pra você me dizer que odeia ler porque acha uma perda de tempo e prefere fazer outras coisas. Ou você poderia simplesmente não feito nada, podia ter deixado o dito pelo não dito; o lido pelo não lido; o sinto pelo não ligo. Mas você não leu nem o primeiro livro. Não leu e não me devolveu. Um dos meus livros preferidos continua esquecido em algum canto da sua casa. Você deixou o tempo passar.

Tayna Saes

Mas, conhecer você foi bom...

"Mas, conhecer você melhor foi bom.. Bom como ler uma letra bonita sem poder escutar a incrível música por trás dela. Como planejar um final de semana na praia e ter dois pneus furados no meio da estrada. Descobrir uma ruazinha bonita no seu bairro e ser estuprado nela. Você é a chuva no meu piquenique. Você é o show ...que não consigo ver porque sou muito baixo. Você é a deliciosa torta de chocolate e limão que para comer eu preciso estar presente no aniversário de 70 anos da minha tia.Você é minha pipa enrolada nos fios de alta-tensão. Você é meu peixe novo que morreu na primeira semana. Você é como uma baleia em extinção querendo viver na minha piscina de mil litros. É como se eu finalmente aprendesse a voar e você fosse a Kriptonita. Eu sou o país independente que você não deixa em paz... Você é o braço que eu quebrei tentando catar as goiabas do vô. Você é o Barcelona vs Real Madrid que não passa na minha tevê.. É como criar coragem pra subir no palco cantar uma música pra você e lá de cima enxergar você no guichê, pagando pra ir embora."

Tayná Saes

Desistência?

"Não recrimino quando uma amiga me diz que largará o marido ou o namorado, que ele tem feito somente mal, que não suporta seu egoísmo e seu descaso, e na semana seguinte faz as pazes com ele e todos os meus conselhos são virados de lado como rascunho para anotar telefone. Não recrimino nada quando é amor.
Não recrimino porque entendo que ao lamentar "tudo está terminado!", ela está somente começando a terminar. Nem de longe é uma conclusão, talvez seja uma descrença.
Não recrimino quando ela me observa com compaixão e confessa que teve uma recaída com ele, que não foi tão bom assim, quando sei que foi o suficiente para ela deixar - durante um mês - mais um botão aberto de sua blusa.
Não recrimino suas reincidências - o corpo tem lembranças próprias.
Não recrimino quando ela chega aos lugares que freqüentava com ele e jura que o esqueceu. Jura que foi lá se divertir com os amigos, mas escolhe a mesa de frente à porta, para imaginá-lo entrando com alguma roupa que ela deu de presente.
Não recrimino quando declara que ele é passado quando não vê futuro.
Não recrimino quando ela escolhe a lingerie, se prepara no salão, fica ainda mais bonita, para despistar o abrigo que veste por dentro.
Não recrimino sua alternância entre a depressão e a euforia, a fragilidade de sua opinião. Não significa que não cumpriu as promessas. As promessas mudam.
Não recrimino quando ela é seca nas mensagens, mas demora imensamente entre uma letra e outra.
Não recrimino sua compulsão em contar a mesma história do início do relacionamento, de fazer as mesmas perguntas para ter as mesmas respostas, de me usar para não sentir tão sozinha em sua solidão.
Não recrimino porque já fui separado, já fui solteiro, já fui casado, já fui o que não quis ser, já doeu uma alegria, já gargalhei uma dor.
Não recrimino quando uma mulher se aproxima dos amigos do ex, somente para continuar falando dele. Não vou arrancar dela a necessidade de reconstituir o seu cheiro.
Não recrimino a loucura de esperar uma ligação e culpar os que ligam pelo simples fato de não serem ele e ainda ocupar a linha.
Não recrimino o choro, o chocolate, a falta de vontade, as palavras que não se formam a tempo de virar palavras.
Não recrimino. Sei que desistir é ainda aguardar, que separar-se não é abandonar quem amamos."


Fabrício Carpinejar

Execução sumária

"Você não a ama. Mas ela o ama.

Ela vai acusá-lo com ou sem motivo, você passará os restos dos dias se defendendo.

Amar é um indiciamento. Você se torna suspeito por toda a vida. Suspeito por não ter dado amor quando estava recebendo. Suspeito por negar sua aproximação. Suspeito por assassinar um amor quando ele estava se formando. Suspeito por não ter sequer tentado.
Você pode humilhar a mulher que o ama. Pode desaforá-la publicamente, encontrar as coisas mais indelicadas para dizer aos seus ouvidos, pode inventar desculpas que não coincidem os dados. Ela confundirá sua resistência com medo. Ela não compreenderá que você não o quer, nenhuma mulher compreende, nem no inferno, nem no apocalipse.
Ela dobrará seus esforços para convencê-lo. Ficará ainda mais encantada com a dificuldade.
Deseja seduzir uma mulher? Negue-a. Constranja-a.
Você pode zombar dela, rir dela, utilizar o escárnio. Ela ainda se manterá inabalável pelo amor. Mandará recados, ligará ao celular, enviará flores, como se nada de ruim tivesse acontecido. Você odeia submissão, mas ela não está mais pensando se está certo ou errado, está o processando de amor.
Quem ama não repara o jeito que ama. Não se conscientizará que é uma chata, uma filhodaputa, uma suicida, uma inconveniente. O amor a torna nobre. Ela se vê uma aristocrata do amor, porque acredita que o amor redime os erros e os exageros, que o amor justifica o ímpeto e a indignação, que o amor lava as escadarias do passado.
Você poderá avisá-la que não terá chances, que não adianta insistir, que não suporta imaginá-la junto de seu corpo. Ela fechará os ouvidos. Em todos os porres, lembrará de seu nome, irá até sua casa silenciosamente fazer sentinela. Com uma mulher apaixonada perto de você, não precisa de zelador, de guarda de rua, de guarda-chuva. Ela estará contando seus passos. É seu leão-de-chácara de graça.
Você poderá mudar de estratégia, não revidar com violência suas investidas. Com calma e senso, mostrará uma série de razões para se afastar. Ela entenderá de modo distorcido, que está aceitando finalmente o amor. Colocará palavras em sua boca já que não consegue sua boca. Você declara que deseja a amizade. Ela responde que já é um começo. Armado ou indefeso, qualquer atitude não surtirá efeito, ela não aceita ser recusada.

O amor condena."

Não quero mais sua desculpa

"O pior orgulhoso não é o que não deseja pedir desculpa.

É o que exige desculpa.

Eu peço desculpas com facilidade, aliás, antecipo desculpas do que ainda não fiz. Posso me desculpar pelos outros, para não perder o hábito. Choro os enfermos para não chorar os mortos.
Por me ver em excesso, nunca compreendi minha mulher. Assim, definitivo: nunca. Quando ela erra, eu a cobro com uma criança pela palavra mágica. Deixo de ser o marido para me tornar um pai, indeciso com qual castigo tomar. Um pai que educa pela severidade e esquece que erra tanto quanto, que não está um passo acima e nem um degrau abaixo.
Nas brigas intermináveis, diante do suicídio dos copos de geléia, ela chora, esperneia, grita, sacode os cílios das onze-horas na janela, e não a consolo para esperar ouvir sua desculpa. Mostro-me frio e indiferente. Maldita obrigação de se desculpar. Uma maldade ambiciosa de ver quem você ama sofrer e se ajoelhar com os dentes.
Nem é o "desculpe, errei", eu pretendo ouvir o "desculpa, está certo". Nada mudará com essa ignição verbal. O carro não partirá.
Eu a forço a se desculpar e dizer que não mais fará. Porém, sei que ela fará. Ela pede desculpas somente para sair daquele elevador claustrofóbico da linguagem, não por acreditar naquilo que falou. Eu a ameaço quando poderia estar a convidando a se abrir. Ela se fecha pois não demonstro vontade de entender seu temperamento, feito mais de atitudes do que de conclusões.
Ninguém se sentirá bem e aliviado após a súplica. Ambos estão derrotados. Eu porque coagi, ela por responder coagida. Alguma coisa será enterrada, mas não deixará de existir para as mãos.
Pedir desculpa não anula a vontade, talvez aumente. Ao completar a catequese, ia ao confessionário arrependido de todas as masturbações da semana. Aliviado da catarse por uma seqüência rápida de pai-nosso e ave-maria, repetia exatamente os pecados logo que saía da igreja. Pressionar desculpa é uma covardia, um ato violento de humilhação. É cobrar imposto da tristeza. É retirar o riso, as falhas, as indefinições e as aberturas do caráter. É rebaixar você e ela a indigentes do amor.
Não interessa que ela tenha concordado comigo, que esteja a fim de uma conversa franca, que já tenha retirada a defesa. Não canso de brigar até que ela se dê por vencida. Eu quero a desculpa, não a sua compreensão. Eu imponho a desculpa, quando a desculpa é apenas um cumprimento como o bom-dia ou o boa-noite.
A intolerância vem de mim, que não entende que a desculpa pode ser uma mudança tênue de comportamento, um abraço amansado com o rosto no ombro, um beijo trêmulo, a troca de assunto.
A desculpa não resolve, não remove a lembrança, não elimina a ansiedade. É o ponto final de uma frase, não do livro.
Há o crime de reduzir a consciência a uma expressão. Será que eu quero o seu melhor ou não ser ameaçado pela falta de palavras?
Não pedirei desculpa a ela. Para finalmente me perdoar."


Fabrício Carpinejar

Não canse quem te quer bem

"Não canse quem te quer bem" "Foi durante o programa "Saia Justa" que a atriz Camila Morgado, discutindo sobre a chatice dos outros (e a nossa própria), lançou a frase: - Não canse quem te quer bem Diz ela que ouviu isso em algum lugar, mas enquanto não consegue lembrar a fonte, dou a ela a posse provisória desse achado. Não canse quem te quer bem. Ah, se conseguíssemos manter sob controle nosso ímpeto de apoquentar. Mas não. Uns mais, outros menos, todos passam do limite na arte de encher os tubos. Ou contando uma história que não acaba nunca, ou pior: contando uma história que não acaba nunca cujos os protagonistas ninguém jamais ouviu falar. Deveria ser crime inafiançável ficar contando longos casos sobre gente que não conhecemos e por quem não temos o menor interesse. Se for história de doença, então, cadeira elétrica. Não canse quem te quer bem. Evite repetir sempre a mesma queixa. Desabafar com amigos, o.k. Pedir conselho, o.k também, é uma demonstração de carinho e confiança. Agora, ficar anos alugando os ouvidos alheios com as mesmas reclamações, dá licença. Troque o disco. Seus amigos gostam tanto de você, merecem saber que você é capaz de diversificar suas lamúrias. Não canse quem te quer bem. Garçons foram treinados para te querer bem. Então não peça para trocar todos os ingredientes do risoto que você solicitou - escolha uma pizza e fim. Seu namorado te quer muito bem. Não o obrigue a esperar pelos 20 vestidos que você vai experimentar antes de sair - pense antes no que vai usar. E discutir a relação, só uma vez por ano, se não houver outra saída. Sua namorada também te quer muito bem. Não a amole pedindo para ela explicar de onde conhece aquele rapaz que cumprimentou na saída do cinema. Ciúmes toda hora, por qualquer bobagem, é esgotante. Não canse quem te quer bem. Não peça dinheiro emprestado para quem vai constrangido em negar. Não exija uma dedicatória especial só porque você é parente do autor do livro. E não exagere ao mostrar fotografias. Se o lugar que você visitou é realmente incrível, mostre três, quatro no máximo. Na verdade, fotografia a gente só mostra para mãe e para aqueles que também aparecem na foto. Não canse quem te quer bem. Não faça seus filhos demonstrarem dotes artísticos (cantar, dançar, tocar violão) na frente das visitas. Por amor a eles e pelas visitas. Implicância quase sempre são demonstrações de afeto. Você não implica com quem te esnoba, apenas com quem tem laços fraternos. Se um amigo é barrigudo, será sobre a barriga dele que faremos piada. Se temos uma amiga que sempre chega atrasada, o atraso dela será brindado com sarcasmo. Se nosso filho é cabeludo, "quando é que tu vai cortar esse cabelo, garoto?" será a pergunta que faremos de segunda a domingo. Implicar é uma maneira de confirmar a intimidade. Mas os íntimos poderiam se elogiar, para variar. Não canse quem te quer bem. Se não consegue resistir a dar uma chateada, seja mala com pessoas que não te conhecem. Só esses poderão se afastar, cortar o assunto, te dar um chega pra lá. Quem te quer bem vai te ouvir até o fim e ainda vai fazer de conta que está se divertindo. Coitado. Prive-o desse infortúnio. Ele não tem culpa de gostar de você."

Aqui, agora, de todo o coração

"Escolher é difícil. Pergunte a um psicólogo e ele vai explicar por que gente obrigada a optar entre uma coisa e outra – qualquer que sejam essas coisas – sente ansiedade. Isso acontece em lojas de sapato, em restaurantes, na porta do cinema e até no sexo. Uma amiga me contou outro dia como foi estar numa festa e ter dois homens sedutores dando em cima dela. “Tive de escolher um deles, mas com um aperto no coração”, ela me disse. No dia seguinte, o bonitão que ela escolheu caiu no vácuo e nunca mais deu notícias. Escolher, ela aprendeu, é abrir mão de alguma outra coisa - e as consequências podem ser irreversíveis.

Infelizmente para nós, nem todas as escolhas são tão simples quanto a do sexo na balada. Penso na escolha mais delicada que a gente faz na vida, aquela que envolve os parceiros de longo prazo. Em que momento concluímos que uma pessoa deixou de ser apenas item de prazer ou fonte de encantamento e se tornou a criatura com quem vamos dividir a vida? Pode ser casando, comprando apartamento e tendo filhos, ou, de forma menos ritualizada, pondo os sentimentos e necessidades dela no centro da nossa vida, mesmo vivendo em casas separadas. O compromisso é parecido, assim como os caminhos que levam a ele.

A primeira coisa que conta nas grandes escolhas – eu acho - é a permanência. Ninguém tem direito a reivindicar um posto dessa importância sem ter ralado um tanto. Não adianta a Fulana decidir, em 30 dias, que vai ser sua mulher para o resto da sua vida. Não funciona assim. O teste do tempo é fundamental. Se aquela mulher ou aquele sujeito continua lá depois de todas as discussões e inevitáveis desencontros, se ela ou ele resolveu ficar depois de todas as chances de ir embora, se os seus sentimentos em relação a ele ou ela continuam vivos, um bom motivo há de haver.

É essencial, também, que a experiência de convívio seja boa. Amores tumultuados dão bons filmes e péssimas vidas. É essencial acordar no sábado e ter vontade de ficar mais tempo na cama, enrolado naquele ser ao seu lado. Se a conversa antes de dormir deixou de ser gostosa ou se qualquer programa parece mais interessante do que a companhia dela ou dele, para que insistir? O prazer que o outro proporciona é essencial. Prazer de transar, prazer de olhar, prazer de ouvir, prazer de simplesmente estar. Se você caminha pela rua com ela e os dois são capazes de rir um com o outro, algo vai bem. Se você passa a tarde com ele no sofá, lendo ou transando, e o dia parece perfeito, eis um bom sinal. A felicidade não tem receita, mas a gente percebe quando está funcionando.

Para que as coisas funcionem no longo prazo é essencial haver lealdade. Eu cuido, eu protejo, eu respeito – e você faz o mesmo comigo. Se você não sente que seus sentimentos e a sua vida são importantes para ele ou para ela, desista. Como o ambiente lá fora é hostil, é essencial saber que no interior da relação existe cumplicidade e abrigo, com um grau elevado de honestidade: você diz o que pensa e isso vai ajudar, ainda que doa. É impossível prometer que coisas ruins jamais irão acontecer, é falso garantir que os sentimentos permanecerão os mesmos para sempre, mas é essencial olhar nos olhos do outro e sentir a disposição de tentar, verdadeiramente, que seja assim. Aqui, agora, de todo o coração, tem de ser para sempre – ou então a gente nem começa.

Se tudo isso existir – e não é fácil – ainda fará falta um quarto elemento, essencial ao equilíbrio duradouro das relações: os planos. Se ele que ter cinco filhos e você não quer ser mãe, não vai rolar. Se ela quer levar uma vida de viagens e aventura e o seu sonho é ficar aqui mesmo, perto das famílias e dos amigos, não deu. Viver bem pressupõe afinidades essenciais de gosto, sentimento e expectativas, sem falar de ideologia. Todas essas coisas se refletem nos planos. Eu penso no amor como um voo de longa distância. O avião precisa estar carregado com o tempo da relação, com o prazer que ela proporciona e com a lealdade em que ela está baseada – mas as pessoas ainda têm de concordar sobre o destino. Se eu quero ir à Tóquio e você à Nova York, precisamos embarcar em vôos diferentes."



(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

Quantas vezes eu assassinei o amor?

O amor nunca morre de morte natural. Anaïs Nïn estava certa.

Morre porque o matamos ou o deixamos morrer.

Morre envenenado pela angústia. Morre enforcado pelo abraço. Morre esfaqueado pelas costas. Morre eletrocutado pela sinceridade. Morre atropelado pela grosseria. Morre sufocado pela desavença.

Mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa de sétimo dia.

Mortes sem sangramento. Lavadas. Com os ossos e as lembranças deslocados.

O amor não morre de velhice, em paz com a cama e com a fortuna dos dedos.

Morre com um beijo dado sem ênfase. Um dia morno. Uma indiferença. Uma conversa surda. Morre porque queremos que morra. Decidimos que ele está morto. Facilitamos seu estremecimento.

O amor não poderia morrer, ele não tem fim. Nós que criamos a despedida por não suportar sua longevidade. Por invejar que ele seja maior do que a nossa vida.

O fim do amor não será suicídio. O amor é sempre homicídio. A boca estará estranhamente carregada.

Repassei os olhos pelos meus namoros e casamentos. Permiti que o amor morresse. Eu o vi indo para o mar de noite e não socorri. Eu vi que ele poderia escorregar dos andares da memória e não apressei o corrimão. Não avisei o amor no primeiro sinal de fraqueza. No primeiro acidente. Aceitei que desmoronasse, não levantei as ruínas sobre o passado. Fui orgulhoso e não me arrependi. Meu orgulho não salvou ninguém. O orgulho não salva, o orgulho coleciona mortos.

No mínimo, merecia ser incriminado por omissão.

Mas talvez eu tenha matado meus amores. Seja um serial killer. Perigoso, silencioso, como todos os amantes, com aparência inofensiva de balconista. Fiz da dor uma alegria quando não restava alegria.

Mato; não confesso e repito os rituais. Escondo o corpo dela em meu próprio corpo. Durmo suando frio e disfarço que foi um pesadelo. Desfaço as pistas e suspeitas assim que termino o relacionamento. Queimo o que fui. E recomeço, com a certeza de que não houve testemunhas.

Mato porque não tolero o contraponto. A divergência. Mato porque ela conheceu meu lado escuro e estou envergonhado. Mato e mudo de personalidade, ao invés de conviver com minhas personalidades inacabadas e falhas.

Mato porque aguardava o elogio e recebia de volta a verdade.

O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem recuar. O amor é a boca suja. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em segredo no quarto. O amor vai abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina em sua casa. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia rever.

O amor é sempre assassinado. Para confiarmos a nossa vida para outra pessoa, devemos saber o que fizemos antes com ela.


- Fabrício Carpinejar