Pedaços Humanos

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Paradoxo

Você e essa discussão de até aonde eu iria pra você ver que isso é amor. Acho que a gente nunca vai chegar num ponto comum quando fala sobre isso. Até quando eu abro a porra da porta do táxi pra te ver indo embora com outro sujeito qualquer que não seja eu, é amor. Altruísta e egoísta ao mesmo tempo. Eu sempre vou embora e sei que não posso te pedir pra ficar pra sempre me esperando numa sala de estar com um sorriso congelado no rosto. É a mesma coisa que te transformar em manequim com teias de aranha e aquele olhar triste das vitrines abandonadas da cidade. Não sou cruel e muito menos valente o suficiente pra lutar por você e desistir de tudo o que eu construí e o que você construiu individualmente. A gente se entende quando deita de costas no chão e fica lado a lado em silêncio olhando o teto. Você não vê a infiltração e as rachaduras da casa como eu. Você só vê um teto e uma respiração controlada e abafada do teu lado que pertence a mim. Eu sei que você é uma mulher que não se importa com os problemas mais superficiais da nossa relação e que você queria mesmo é que eu tomasse uma atitude e fosse atrás de você de vez, te segurasse antes de entrar em qualquer avião e te arrancasse um beijo daqueles que filme nenhum mostrou até hoje. Mas eu sou covarde e prefiro te amar de um jeito meio brusco e meio tolo. De um jeito que te deixa ir e ainda compra as passagens. De um jeito que não te prende a um lugar vazio porque eu nunca pertenci a lugar nenhum nessa casa. Eu abro mão de você de uma forma carinhosa até. Você me afaga e eu mato esse amor que você sente porque você nunca vai poder contar comigo direito. Não sei se é insegurança ou se é só coisa de homem com alma de menino. Não sei se vou ou fico, não sei se te mantenho por perto sabendo que posso te fazer sofrer ou se te faço sofrer por não te manter por perto. De um jeito ou do outro eu sou errado demais pra que você possa acreditar que te amo. Incoerente e sem nexo nenhum. Sem discussões. Mas é triste ver o brilho dos teus olhos quando a gente finalmente se reencontra depois de eu te ligar às duas da manhã pra dizer que tô chegando. Dessa vez o táxi tem destino apenas de ida. Você tomou coragem e mostrou que a menina dos seus olhos decidiu tirar umas férias e deixar uma mulher decidida no lugar. Enfurecida, machucada e completamente certa do que quer. Você resolveu ir embora de vez e se despedir da minha covardia. Justo. Também não gosto de gente indecisa que diz que ama e faz completamente o contrário. Meu jeito errado demais de amar podia ter matado nós dois. E espero que esse cara que você vai achar em algum lugar do mundo possa ter a sorte de te encontrar com o coração aberto e pronta pra outra. Eu sei que fiz um baita rombo e que merecia ser chamado de filho da puta pelo resto da vida. Mas é melhor assim. E você pode me fazer um baita de um favor, hein. Se algum dia te perguntarem que gosto é esse de sentimento morto nos teus lábios (esse gosto de saudades, arrependimento e decisão), você pode responder: “Simples: o meu grande amor me matou uma vez. Aceitar o novo amor que me abraça é uma chance de voltar a viver”. E que ele aceite o desafio de te trazer de volta à vida. Espero que você possa confiar quando o seu novo amor for puxar a cadeira. Não, ele não está abrindo a porta desse táxi para te deixar ir embora de vez. Não, ele não está abrindo mão de você pra sempre por algum medo estúpido que nem ele mesmo sabe explicar. Não, ele está sendo gentil. Mais gentil do que eu um dia poderia ter sido ao te prometer um abraço.

Não vale a pena

Quatrocentos e vinte nove dias e cinco horas mais dois minutos. O que você está fazendo da sua vida? Como se eu tivesse ideia do que eu mesmo estou fazendo da minha. A rotina das minhas retinas escancaram modismos e comodismos. Não era você que ia salvar o meu mundo e mudá-lo radicalmente em três minutos? Até que conseguimos aumentar esse tempo com paciência e desaprovação. Quando a gente vive com muita vontade alguma coisa, a mentira se torna real demais pra que a gente acredite que era só uma mentira. Ela constrói um mundo inteiro como se fosse um castelo de cartas. Prazer, rei de paus. A rainha de copas soprou o castelo, deu meia volta e nos sabotou. Eu te projetei um pouco. Mas essa confissão a gente só faz depois que já passou uns dias maldizendo e dizendo que a culpa é toda nossa. Existe uma sensação de poder em volta da culpa. A culpa foi minha, logo, não deu certo por minha causa. Eu mantive esse egocentrismo durante todo o tempo e agora eu me vejo nessa posição de controle que é fascinante. Você pode se assustar com a forma com que estou lidando com isso e me chamar de cruel. Mas eu acho que você que era cruel demais. Pelo menos eu quero me lembrar de você assim: cruel demais. Girar a maçaneta com tanta convicção e me dizer que eu matei os seus sonhos. Bobagem. Quem precisa sonhar quando se consegue fingir tão bem que é feliz? Você precisa de mim. Em todas as suas pinturas havia algo de mim. Esfreguei na sua cara outras mulheres como se elas fossem alguma coisa. Eu sou do tipo de perdedor que mantém um troféu em casa e se vicia em apostas. A maior delas foi você. Eu achava que conseguiria corromper essa sua coisa sonhadora e idealizada. Você era boa demais, sabe… Bonitinha demais, legalzinha demais, boazinha demais. Você tinha um conjunto certo demais. E isso sempre me enjoou em você. Mas cada um de nós pensa que pode mudar o outro para que ele se pareça mais com o que a gente espera. Ela vai conseguir romper isso e ser realista; vai conseguir reprimir o pudor e fazer uma lista; vai se deixar levar por mim e se largar de lado. Eu queria uma mulher feita para deixar de ser. Eu queria você assim: como eu quero. Com toda a intensidade e da maneira que eu acho melhor. Mas, porra! Você tinha que cismar em brincar com a minha paciência e se preencher como uma das suas telas. Eu queria você em branco, sem nenhum rabisco, sem nada, meu bem. Arte incompleta, mas você tinha talento. Só me provou no final. Mas não importa. Toda mulher precisa de uma lição e que essa lição venha de quem entenda de moldes. Você vai aprender a moldar os seus próximos amores agora. Todo mundo aprende. Basta que chegue a grande decepção amorosa da nossa vida que a gente aprende a ver os outros de uma nova forma. Eu queria discutir com você sobre o seu novo manual de instruções, mas você foi rápida demais. Precisava dizer que era pra você ficar e que a gente podia se destruir junto. Eu sempre gostei desse joguinho de quem fere mais e quem ama menos. Masoquismo puro, meu bem. É divertido, você vai descobrir isso. Projetei esse parasita dentro de você como um pequeno vírus que vai crescendo cada vez que algum deles chegar perto de você. Eu te programei para sofrer. Isso era o que você estava fazendo da sua vida quando resolveu depositar em mim a sua felicidade. Mas aqui fica a lição que eu tanto quis te ensinar: nenhuma pessoa é lugar de repouso. Tarde demais, meu bem. Você acaba de descobrir que a pena é muito dura para carregar sozinha. Mas, se quiser, eu te ajudo nessa. Se me deixasse falar, eu teria me despedido de vez. Você só virou a chave, virou a cara, virou o mundo e me disse que. É uma pena, mas você não vale a pena. Daniel Bovolento

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cobranças

Pedir um abraço, cobrar um beijo e exigir carinho não combinam com o amor. A cobrança aniquila com a possibilidade de oferecer e de receber o afeto. Como beijar depois de escutar "não me dás mais beijo"? Como transar depois de ouvir "não transas mais comigo"? O que é voluntário vai parecer obrigatório, o que é escolha vai parecer induzido, o que é vontade vai parecer condicionamento. Por que transformar a convivência em coleta de impostos? Será que não se está levando o trabalho para casa, a empresa para a casa, o demônio do cartão-ponto para dentro da carne? Qual é o prazer de pressionar, de impor resultados e regras, de controlar o que é para ser incontrolável? Por que difamar a única verdade que se tem?
É fácil perguntar, difícil é ouvir a resposta sem se mexer, até o final. É fácil atacar para aumentar a culpa, difícil é compreender sem defesas. Cobrar afeto é pior do que agredir fisicamente. Incha mais do que um tapa na cara. É cortar as palavras mais do que os lábios. Assume-se a condição de credor, como se o amor fosse uma dívida. Assume-se uma posição superior em relação ao cobrado. Uma posição hierárquica, de chefe reivindicando o cumprimento dos prazos. Não se cobra o que é espontâneo. Entra-se no solo movediço e insano do recalque. O recalque é uma carência que não conversa mais. É uma carência arrogante, cleptomaníaca, que furta do amor para gastar com a solidão.
Não estou me referindo ao ciúme. A cobrança por afeto não decorre do ciúme, da insegurança, mas se origina no excesso de segurança que beira o autoritarismo. Representa a posse, a mania totalitária de não permitir as imperfeições e desejos contrários. Ah, se a pessoa com quem amamos não está a fim de um beijo ela não me ama mais! Que exagero infantil. Toda hora se deseja ouvir 'eu te amo" como se o amor fosse chiclete para ocupar a boca. Talvez seja mais linguagem de sinais. Depende de reciprocidade, de atmosfera, do outro estar com a cabeça leve e descomplicada para fluir. Não depende só da gente. Nem sempre se está disposto a viver em voz alta. Há períodos destinados a sussurros e cochichos.
Não se pode amar por caridade ou por orgulho, senão cobraremos. Assim como é necessário diferenciar a expectativa do amor, a euforia da alegria, a depressão da dor, pois são sentimentos bem diferentes.
Deve-se tomar cuidado para que não seja criado dentro alguém que não existe fora. Ou criar fora alguém que não existe dentro. O amor não é versão de Windows que é atualizado a cada ano para girar mais rápido. O amor é lento mesmo.

Fabrício Carpinejar

quinta-feira, 5 de abril de 2012

A fidelidade dos pássaros

O homem é um bicho curioso, sacrifica uma relação e parte para outra por ambição. Se casa cedo, pensa que faltou conhecer mais mulheres antes. Se casa tarde, acredita que quando solteiro havia mais chances de ser feliz. Homem é um bicho nostálgico. Nunca está satisfeito com o que tem. Fica enjoado com rapidez. Enjoa-se de si mesmo. Ao invés de melhorar e treinar com afinco, troca o técnico ou culpa a torcida. O homem cogita que é desfavorecido. Enquanto come olha o prato do outro. Deveria aprender mais com os pássaros. Um pássaro não morde vários frutos ao mesmo tempo, para descobrir o sabor de cada um deles. Não estraga os frutos pela ânsia da posse. Não quer ter todos, mas ser todos em um. Não destrói a árvore para fazer barulho. Ao pegar um fruto num dia, volta ao mesmo fruto no dia seguinte. É leal e econômico no afeto. Descasca o sumo de leve com o bico e toma cuidado para não assustar os insetos dentro. É devoto em sua escavação. Leva o alimento para os filhotes, abastece seus olhos africanos, engrossa seu ninho de estrelas e regressa ao seu ponto de origem. Um fruto durará uma semana em seus volteios. Até não sobrar nada, até a semente ficar lustrada de sol. O homem é um bicho insatisfeito. Deixa marcas, cicatrizes, tatuagens e provas de que esteve ali. Morde uma cesta inteira de maçãs sem sequer terminar uma delas, sem conhecer a alegria do pecado de se dedicar somente a uma delas. Pode amar para provocar ciúme, abandonar uma paixão para mostrar independência, trair para magoar, ferir para gerar autoridade. Interessa-se pela quantidade, por contar quantas mulheres teve, por contar quantas vidas perdeu. O pássaro é um bicho invisível. Não muda a ordem, é capaz de arrumar sua cama mesmo hospedado em hotel. O homem deveria observar mais os pássaros. Eles mordiscam os brincos das árvores e não derrubam as orelhas. Não precisam de platéia para matar a fome. São concentrados, não se dispersam na avidez. Os pássaros circundam, namoram, seduzem a fruta antes de pousar. Batem as asas com força para depois descer o próprio corpo flanando. Têm imaginação. A imaginação hidrata e faz a saliva subir. Um romance sem imaginação é livro técnico. Um amor sem imaginação é manual de geladeira. Um homem sem imaginação é um bicho esquisito. Ao transar sem imaginação apenas arruma sua gravata no espelho. Ao mastigar sem imaginação vai apoiar os cotovelos na mesa. Ao abraçar sem imaginação carregará garrafas vazias. Um homem sem imaginação é um bicho morto.

Fabrício C.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ciladas

Quando tua namorada ou namorado diz que podes confiar e contar, que nada mudará na relação, é mentira. A sinceridade te inspira a abrir os segredos para te jogar em seguida na parede. O amor é um jogo de convencimento e persuasão que termina invariavelmente em desconfiança. A pergunta que é feita por ela ou por ele de modo inocente não é uma pergunta, quem dera, pouco guarda da modéstia de uma pergunta, que aceitaria a contrapartida sem ofensa. A pergunta é uma suspeita. Não se deseja uma resposta, e sim "a resposta". A resposta deve somente confirmar uma evidência. A resposta é a evidência que estava sendo cavada.
Sigilo não existe. Quem guarda segredo apenas fingiu que não falou. A diferença é que alguns fingem bem. A pessoa pede a franqueza e afirma que tudo aceitará, que tudo permitirá, para julgar e atacar quando descobrir tudo. O charme inicial e a caridade do gesto são ciladas. Entra-se em uma investigação, não em uma discussão e diálogo. No fundo, há a intenção de conspirar contra aquele amor, de atestar que ele ou ela não presta, de que foi um erro. É incompreensível verificar que o ceticismo surge nos melhores momentos, como a avisar que não pode ser verdade, que a felicidade errou o endereço. Em cada um pisca o dispositivo antifelicidade, detonado para expulsar a intimidade e possíveis alegrias.
Se alguém se torna imprescindível, a estima arruma um jeito e um pretexto para mandá-lo logo embora. Algo que ocorreu no passado mais longínquo vai afetar como se tivesse acontecido há poucos minutos. Se a mulher fala que já trepou com três homens ao mesmo tempo, o cara concluirá que ela é promíscua e terá medo de ser apresentado aos antigos parceiros em alguma festa. Amar é uma paranóia interminável, porque não se tem aquilo que se é e não se pode ser aquilo que se tem. Difícil encontrar no amor o meio-termo, que não resulte em posse, muito menos em indiferença, que não desemboque em obsessão ou em tolerância. Desde quando não se pode ter passado e experiência? Não dá para compreender que casais acreditem que o par tem que ser um objeto lacrado, um carro zero, inviolável. Se ela transa bem é que aprendeu com antigos namorados, é óbvio. E daí? Que bom. Ambos definirão o seu dialeto a partir de idiomas anteriores. Chega de autoritarismo, de transformar a casa em um campo de desmemoriados.
Não se fica generoso com amor, fica-se egoísta. Só se pensa a princípio no nome de quem ama para depois só pensar no próprio nome. O começo é um desapego irrestrito, o final é uma proteção absoluta. No início, há a renúncia em favor do bem-estar da nova paixão. No decorrer da convivência, passa-se a criar mecanismos de defesa para se afastar.
Os opostos se atraem, mas não conseguem permanecer juntos (os parecidos se repelem e ficam juntos). O que parecia maravilhoso e definitivo, a sedução da diferença, a atração de um continente desconhecido é substituído pela tentativa de moldar o outro aos seus gostos. O respeito desanca em dominação. Não importa que ele saía com os amigos, que jogue futebol, que tenha grandes amigas desde que ele deixe, pouco a pouco, de sair com os amigos, jogar futebol e perder de vista as grandes amigas.
Ainda com complicações, é possível ser casado com a memória. De maneira nenhuma com a imaginação. A imaginação é sempre solteira. Se o marido não liga, demora para chegar, é evidente que a imaginação o viu com duas ou três mulheres em meia hora. A imaginação não aceita a confiança, procura o pior para depois gritar que já sabia. "Eu sabia" é a frase mais irritante de todo relacionamento. Mostra arrogância e, o mais grave, sinaliza a certeza do fracasso.


Fabrício Carpinejar

Pássaros comem na mão

A minha dor, eu sei resolver. Ainda que seja a custo alto, sei resolver. Pode ser com um calmante, um trabalho físico, um desabafo. Pode ser mexendo na horta, organizando as roupas no armário, limpando a casa, xingando Deus, sei resolver. Ainda que demore, mas resolvo. O que não sei resolver é a dor do outro. Fico mudo, meu braço sobra, minha mão falta, minha boca treme algum vento sem força. A dor do outro não se comunica. Não dá não tira emprego. A dor do outro me isola. Tento uma brecha para falar, porém sinto-me intruso, incômodo, solteiro. Como uma casa em reforma. Toda dor só é compreensível no idioma da dor. Quem está fora não entende, não tem razão, não alcança sentido. A dor não busca conselhos, a dor busca a pele para colocar por cima, busca cicatrizar a ferrugem e a maresia. A dor do outro é pedalar com a respiração. A dor do outro me desfalca, me devassa, me faz duvidar que podia ouvir. A dor do outro é a minha dor mais pessoal, porque é indiferente a minha própria dor. A dor do outro é uma parada de ônibus sem ônibus porvir. Uma parada de ônibus para sentar e não ir. A dor do outro fica no lugar da dor, não suporta um passo além do círculo de sua lembrança fixa. A dor do outro tem a altura de um grito que não é dado para não desperdiçar a dor. A dor do outro não ri porque séria chega mais rápida ao fim da dor. A dor do outro não se empresta, é dor de osso, dor que não se enxerga de dia e não se enxerga de noite. A dor do outro é neblina com a roupa presa nos galhos. A dor do outro é uma escada sem mureta, sem apoio. Uma escada desigual como a cintura ao dormir. A dor do outro me esconde, me segrega, me empurra com os cotovelos para onde não desejava voltar. A dor do outro me pede ajuda para não ajudar. É severa como uma verdade antes da morte, severa como uma mentira depois da morte. A dor do outro é banal, irrisória e tola para os que não mergulharam em dor. A dor do outro é hipocondríaca e carente aos que não enterraram seus pés ao correr. A dor do outro é discreta pois os sons não se encontram na pronúncia. A dor do outro tarda para retornar a ligação. A dor do outro parafusa a lâmpada para quebrar. A dor do outro não usa agenda, não recorre ao diário, a dor do outro é escrita esquecida. Não se escreve na dor, se escreve para manter distância dela. A dor do outro não encontra dentes para mastigar. A dor do outro se mastiga com a língua. A dor do outro não consulta horóscopo, não requer meteorologia, a dor do outro não muda, é igual ao que não se entende. A dor do outro é caseira, pois sair de casa é levar a casa. A dor do outro é destelhada. A dor do outro é uma árvore avessa, uma alegria avessa, uma água que já estava na boca. A minha dor, eu resolvo. A dor do outro, não sei onde colocar, onde me colocar. Faço como minha avó Elisa. Quando alguém recusava um abraço, ela pedia para devolver. Devolver o abraço é a dor do outro.

Fabrício Carpinejar

Dar um tempo

Não conheço algo mais irritante do que dar um tempo, para quem pede e para quem recebe. O casal lembra um amontoado de papéis colados. Papéis presos. Tentar desdobrar uma carta molhada é difícil. Ela rasga nos vincos. Tentar sair de um passado sem arranhar é tão difícil quanto. Vai rasgar de qualquer jeito, porque envolve expectativa e uma boa dose de suspense. Os pratos vão quebrar, haverá choro, dor de cotovelo, ciúme, inveja, ódio. É natural explodir. Não é possível arrumar a gravata ou pintar o rosto quando se briga. Não se fica bonito, o rosto incha com ou sem lágrimas. Dar um tempo é se reprimir, supor que se sai e se entra em uma vida com indiferença, sem levar ou deixar algo. Dar um tempo é uma invenção fácil para não sofrer. Mas dar um tempo faz sofrer pois não se diz a verdade.
Dar um tempo é igual a praguejar "desapareça da minha frente". É despejar, escorraçar, dispensar. Não há delicadeza. Aspira ao cinismo. É um jeito educado de faltar com a educação. Dar um tempo não deveria existir porque não se deu a eternidade antes. Quando se dá um tempo é que não há mais tempo para dar, já se gastou o tempo com a possibilidade de um novo romance. Só se dá o tempo para avisar que o tempo acabou. E amor não é consulta, não é terapia, para se controlar o tempo. Quem conta beijos e olha o relógio insistentemente não estava vivo para dar tempo. Deveria dar distância, tempo não. Tempo se consome, se acaba, não é mercadoria, não é corpo. Tempo se esgota, como um pássaro lambe as asas e bebe o ar que sobrou de seu vôo. Qualquer um odeia eufemismo, compaixão, piedade tola. Odeia ser enganado com sinônimos e atenuantes. Odeia ser abafado, sonegado, traído por um termo. Que seja a mais dura palavra, nunca dar um tempo. Dar um tempo é uma ilusão que não será promovida a esperança. Dar um tempo é tirar o tempo. Dar um tempo é fingido. Melhor a clareza do que os modos. Dar um tempo é covardia, para quem não tem coragem de se despedir. Dar um tempo é um tchau que não teve a convicção de um adeus. Dar um tempo não significa nada e é justamente o nada que dói.
Resumir a relação a um ato mecânico dói. Todos dão um tempo e ninguém pretende ser igual a todos nessa hora. Espera-se algo que escape do lugar-comum. Uma frase honesta, autêntica, sublime, ainda que triste. Não se pode dar um tempo, não existe mais coincidência de tempos entre os dois. Dar um tempo é roubar o tempo que foi. Convencionou-se como forma de sair da relação limpo e de banho lavado, sem sinais de violência. Ora, não há maior violência do que dar o tempo. É mandar matar e acreditar que não se sujou as mãos. É compatível em maldade com "quero continuar sendo teu amigo". O que se adia não será cumprido depois.


Fabrício Carpinejar

Conversa séria

Pede-se transparência como se fosse fácil. Falar os assuntos com franqueza, esquecendo que existe a fraqueza por detrás. Conversar com os filhos abertamente, com o namorado abertamente, com os pais abertamente não é dizer tudo. Relação aberta é também não falar. A honestidade termina quando cai no constrangimento ou na vergonha. A conversa não pode diminuir o interlocutor, fazê-lo sentir culpado, ínfero, humilhado. Cito duas cenas de ilustração. Um amigo se masturbava no banheiro. Sua irmã mais velha pegou a cópia da chave e o flagrou no ato. Não bastando, gritou a sua colega de escola que o irmão estava batendo punheta. Pelo que sei, citou até o tamanho do pênis. É óbvio que o amigo ficou vexado a ponto de não olhar para suas calças durante um mês. É traumático confundir liberdade com intimidade. A linguagem não permite a clareza integral, muitas vezes não dizer é um modo de compreender. O escuro conforta e oxigena. Nada demais em se masturbar, eu faço, a maioria faz. Que ridículo seria o pai ou a mãe chegar do trabalho e perguntar: " filho, te masturbou hoje?" Abordar o sexo não é torná-lo uma religião, com minúcias extravagantes e irritantes. Hábitos são saudáveis desde que não transformados em caricaturas ou depreciados em manias. Não é justo apagar o sentimento da jogada. O amigo estava reagindo com a sua sexualidade de um modo espontâneo e natural. O problema não era dele, mas da irmã, que o retorquiu como se ele fosse uma aberração. Duvido quando sou convidado para uma conversa séria, sei que terei que enfrentar um novo trauma pela frente. Conversa séria é quando não existe o que expor, desembocando nos preconceitos e projeções distorcidas. "Olha, queria te avisar, meu filho, que é recomendável ter cuidado ao transar?" Não encontro saída de incêndio: ou desliza para o sermão, moralista e duvidoso, ou às censuras, intimidando a expressão. Não sugiro nenhuma conversa séria, com trilha sonora de filme de terror. Quero falar as verdades me importando com as verdades de quem eu falo, não sobrepondo as minhas verdades às verdades dele. Não sou zelador em vida das pedras dos dez mandamentos. É fundamental sair do meu ponto de vista para não ficar cego. Conversa séria pode ser divertida, imbuída de alegria e autocrítica. Recordo que a primeira vez que transei em casa sujei seriamente os lençóis. Não tinha noção do funcionamento da máquina de lavar. Passei um sufoco para me livrar do pânico: o que a minha mãe iria concluir? Escondi os panos no armário da lavanderia. Era patético esconder naquele canto, numa caixa de papelão, alguém perceberia a falta, porém quando estamos com receio realizamos as coisas mais absurdas. Minha mãe deve ter encontrado os lençóis (sumiram dali em três dias), lavado e não me comentou uma nuvem. Não me censurou, não me deixou culpado. Sua educação me protegeu e me inspirou a confiar nela. Não me vi como um animal acuado, e sim como alguém aprendendo a lidar com a vida. Relação aberta é também respeitar o silêncio.

Fabrício Carpinejar

A alegria é insônia

“Esquecemos com facilidade o que não queremos compreender. Acreditava que as árvores só cresciam de noite. Não mudei de opinião. Os homens crescem dentro das árvores. Falo comigo, o que não significa que me escuto. Ainda não conheço as palavras. Complico minha vida para a morte ter o que pensar. Assim a entretenho. O frio quando chega de assalto torna as pessoas desajeitadas, deselegantes. É como se elas usassem uma roupa em cima da outra, sem muita concordância. Parece que estamos com casacos alugados. Não peço licença para pressentir. A lembrança tem uma cicatriz que não fecha pela insistência. A insistência é a pressa de se ver acabado. A pressa é curiosidade de não se acabar. Eu não cicatrizei minha vida. Não me culpo por me desperdiçar, muito menos procuro desviver o que vivi para estar de paz com a memória. Não há paz na memória. A alegria é insônia. Eu me perpetuo ao me consumir. Quem se adia não chega nem ao seu começo. A ferida é a altura da árvore, do homem dentro da árvore, que só cresce de noite.” F.C

Imprevisível

Comete bobagens. Não penses demais porque o pensamento já mudou quando se faz. O que acontece normalmente, encaixado, sem arestas, não é lembrado. Ninguém lembra do que foi normal. Lembramos do porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos declaramos em público. Comete bobagens. Disputa uma corrida com o silêncio. Não há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca, para que o teu futuro do passado não seja ressentimento. Demite o guarda-chuva, desafia a timidez, conversa mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho no rio. Mexe as chaves no bolso para despertar uma porta. Comete bobagens. Não compres manual para criar os filhos, para prender a ereção, para despistar os fantasmas. Não existe manual que ensine a cometer bobagens. Não sê sério, a seriedade é duvidosa, sê alegre, a alegria é interrogativa. Quem ri não devolve o ar que respira. Não atravesses o corpo na faixa de segurança. Grita ao vizinho que não suporta mais não ser incomodado. Usa roupas com alguma lembrança. Usa a memória das roupas mais do que as roupas. Desiste da agenda, dos papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem. Procura falar o que não vem na cabeça, falar uma música ainda sem letra. Deixa varrer seus pés, casa sem namorar, namora sem casar. Sê imprudente porque quando se anda em linha reta não há histórias para contar. Leva uma árvore para passear. Chora nos filmes babacas, dorme nos filmes sérios. Não esperes as segundas intenções para chegar nas primeiras intenções. Não digas eu sei, eu sei, quando nem se ouviu direito. Almoça sozinho para sentir saudades do que não foi servido em tua vida. Liga ao amigo sem motivo, lê o livro sem procurar coerência, ama sem pedir contrato, esquece de ser o que os outros esperam para ser os outros em ti. Transforma o sapato em um barco, põe na água com tua foto dentro. Não arrumes a casa na segunda. Não sofras com o fim do domingo. Alterna a respiração com um beijo. Volta tarde. Dispensa o casaco para se gripar. Solta palavrão para valorizar depois cada palavra de afeto. Complica o que é muito simples. Conta uma piada sem rir antes. Não chores para chantagear. Comete bobagens. Ninguém lembra do que foi normal. Que tuas lembranças não sejam o que faltou dizer. É preferível a coragem da mentira do que a covardia da verdade.


Fabrício Carpinejar

Desistir

Quando descubro que a pessoa com quem vivi mais de quinze anos traía, mentia e zombava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o dente é uma dor de osso, não uma dor da pele, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o filho não escuta, finge e faz o contrário do que se pedia, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que alguém tão próximo morreu e não falei nada, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que a realidade não é a mesma coisa que a vida e uma pode faltar e outra sobrar, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que o amor parou enquanto eu andava, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que tenho saudades mais do que não aconteceu do que aquilo que aconteceu, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que estou dispensado do emprego que julgava estável e definitivo, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que as tarefas, os compromissos, as reuniões me mantinham entretido porque não sei o que fazer sozinho, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que fiquei fora e não tive vida dentro, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que afastei todos que chegaram perto de meus segredos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que sou o único da sala, de um tempo, de uma lista, a não ser convidado para a festa, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que os amigos trocaram de telefone há décadas e não sei para onde ir, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que deixei de puxar conversa e me alegrar longe do final de semana, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que meus pais não me amavam como queria e só amavam como podiam, que minha infância foi inventada para não sofrer com a verdade, que fui um filho do acidente, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que falam em minhas costas, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não posso perdoar o que desconheço, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que saber demais é saber menos, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que perdi minhas pernas, um braço, que perdi a visão ou a audição, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não sou igual nem aos outros muito menos ao que acreditei ser, penso que não vou sobreviver. Quando descubro que não acompanho meu raciocínio, que envelheci e não faço tudo sozinho, penso que não vou sobreviver. Mas a esperança é sempre mais teimosa do que eu. E justamente no final da desistência, um sol estranho, um cumprimento sem endereço, uma laranja úmida, uma foto desatenta, acredito que não é tarde e recomeço sem memória. Durmo e penso que foi um pesadelo, que exagerei, enlouqueci, que não tenho roupa para a tristeza, que fui duro e confundi a tolerância com a paciência. Saio debaixo do meu corpo. Tomo um banho mais longo na respiração. Provo o pão e o mel é sábio. Solto uma risada sem propósito, fico leve e caminho em telhas. Abro bem os olhos de cada palavra. Um dia antes de morrer, uma hora antes de morrer, alguns minutos antes de morrer e ainda não será tarde. E sobrevivo apesar de mim, depois de mim, antes de mim, em mim.

Fabrício Carpinejar

Coração grande

"Incrível como as vezes me engano. Ou, quem sabe, como o mundo me engana. Quem me enganou? Meus pais? Quem me criou e me transformou em uma adulta cheia de ilusões assim? Eu nunca sei se a "estranha" sou eu ou se as pessoas estão esquisitas demais. Algumas coisas que acontecem e viram rotina estão muito fora do que eu tenho como realidade. Isso vai de grandes a pequenas coisas, como pais estuprando suas próprias filhas ou jovens que não cedem espaço no ônibus para um idoso sentar. Trancam o amor e o respeito ao próximo a sete chaves no armário antes de sair de casa? Escondem-o embaixo do colchão ou o quê?
Sou eu quem valoriza demais coisas que não tem mais valor? Sou eu quem estou atrasada no tempo? Se sim, será que vale apena seguir em frente, encarar o futuro? Sinceramente eu tenho medo. Medo de que se torne bobagem o que eu penso que é essencial.
Há uns dias recebi a notícia de que uma tia-avó estava doente. Estava se sentindo muito indisposta e o corpo todo estava bem inchado. Após muitos exames descobriram o que a estava deixando assim. Palavras do médico: coração grande.
Confesso que me espantei e perguntei "e desde quando isso é doença?" Agora ate a medicina está macumunando com isso também? O que vão fazer, entupir a minha tia de remedio até que ela fique com o coração murcho?
Olha, eu não sei você.. mas eu sempre quis ter um coração gigante! Claro que um pequeno espaço é reservado para as pessoas com quem mais me identifico, normal, todos fazem isso. Mas eu sempre quis respeitar, admirar e fazer o bem para o máximo de pessoas que fosse possível. E é isso o que tento fazer diariamente, sempre achando que esse seria o jeito de ser uma pessoa melhor. Uma pessoa melhor para mim mesma, porque eu me sinto bem assim.
Agora, sem mais nem menos, descubro que isso é uma doença grave, que pode matar, que deve ser tratada às pressas e eliminada com brevidade. Descrubro que um coração grande pode fazer muito mal, causar dores terríveis e maltratar o corpo; que pode nos deixar entrevados em uma cama, sem poder sair pra dançar, beber um pouco com amigos, estar perto de quem a gente ama e que nos ama também. Descubro que um coração grande pode nos deixar internados em um quarto gelado de hospital, com aqueles travesseiros finos, aquela roupa de cama sem cheiro de nada, aquela janela de enfeite e a tal comida sem sal.
Eu prefiro continuar. Mesmo depois de saber de tudo isso eu prefiro continuar buscando a cada dia um coração enorme. Quem não estiver satisfeito, mude o nome da doença! Coloque nela um nome bem complexo, e se possível duplo, daqueles que mal conseguimos pronunciar.. porque se minhas jovens irmãs escutam isso vão crescer achando que ter um grande coração é ruim. Já pensou, Doutor?


Tia, é claro que eu torço para sua melhora, que todos os sintomas passem, mas não quero que seu coração diminua. Dentro dele eu me sinto confortável, eu danço, brinco e canto. Não quero viver em um "coração quitinete", sem espaço, sem ventilãção, sufocada com o próprio amor. Meu big coração está esperando você e sua risada gostosa de volta."

Tayná Saes

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Explicações pela metade

Há tanta coisa que amei sem entender. Acho que amo para não explicar. Amo para deixar de me explicar. Amo para me contradizer de explicações. Eu me sinto difícil, um texto difícil, eu me sinto burro quando me leio. Cada vez mais burro. É a pressa de minha letra. Eu sou embaralhado de desejos, os desejos são dúvidas que o corpo responde e não explica. Responder não significa explicar. Explicar mesmo é quando dedicamos uma vida por uma pergunta. Mas quem faria isso? Já é penoso dedicar uma vida inteira para ter uma resposta. Se não entenderes o que quero dizer, estamos quites. Eu sou mais o desaforo do que o elogio. Somos todos vulgares, mas alguns são vulgares na hora certa e outros vulgares a toda hora. Uma mulher vulgar no quarto é muito educada para a memória. Um homem vulgar fora do quarto é muito educado para o esquecimento. Vulgaridade é como religião, quem reza sem parar não sabe nem mais para o que está rezando. Rezar exige esquecer de rezar. Rezo no automático e de vez em quando já estou pensando em amoras, em doces, em minha mulher dobrando o lenço, em pornografia. Sei lá, já estou orando para outra coisa que não a minha promessa. Eu rezo para lembranças emprestadas, alheias. Não se fica no mesmo lugar do pensamento nem para escovar os dentes. O pensamento migra. Um dos meus pânicos é chamar o garçom e ele não me enxergar. Levantar o dedo impulsivamente e ficar com o braço ao alto, sem contrapartida. Um braço erguido me faz ser insignificante, como um náufrago. O garçom olha para todos os lados, menos para mim. Ameaça virar o pescoço e o rosto não o acompanha. Sou uma parede falsa. Depois que se levanta o dedo, não adianta coçar o ouvido. Coçar o ouvido é mais feio do que não ser reparado pelo garçom. O garçom deveria ter sido aluno da minha professora no ensino fundamental. Alçava-se o dedo e ela chamava rapidamente meu nome. O nome faz a maior diferença quando não se entende o que se quer dizer. Há pessoas que somente escutam uma conversa quando seu nome é citado. Mas meu interesse não pode ser reduzido ao meu nome. Quanto mais se explica, mais se confunde. Como esclarecer o relacionamento no fim de noite. Acerta-se a primeira provocação e depois se erram as seguintes, tenta-se corrigir e nos atrapalhamos com as palavras. Confessamos o que não foi pensado e de vítima a agressor é um passo. Quantos casamentos ruíram pela mau uso dos sinônimos, apesar das melhores intenções do casal? Arrancar um pedido de desculpa custa caro. E a discussão do relacionamento não termina porque não se tem mais como escapar dela de uma forma digna, restando o choro ou o cinismo. Acho que amo para não explicar. Amo para deixar de me explicar. Amar é como uma porta giratória para uma criança. Ao empurrar a porta, a criança retoma o seu local de partida, não entrará no novo ambiente. Porque não há lógica em dar uma meia volta. Ninguém quer uma paixão pela metade, uma passagem pela metade, uma amizade pela metade. Porta giratória é um crime. Assim como todo amor. Ele me sugere que vou sair para fora de mim, porém no fundo eu fica mais preso em mim. Na verdade, giro para regressar ao lugar que sai. É complicado? Pensa então nas bolachas com recheio. Eu abria com cuidado cada uma delas, separava em dois blocos e raspava com os dentes o chocolate ou o morango. Havia tanta concentração para não quebrá-las antes de finalizar o ritual. Não admitia parar no meio. Virava um sonâmbulo da boca. Sempre me falaram que não é aconselhável acordar um sonâmbulo. O sonho sabe melhor o caminho de volta do que o próprio sonhador.

Antes nunca do que tarde

Não me desespero quando não recebo as respostas das perguntas que não fiz. Nem sempre estou preparado para escutá-las. A gente pergunta todo tempo mesmo sem usar as palavras. Tenho receio de gastar a linguagem e não sobrar para depois. Já disse verdades para pessoas erradas. Já disse erros para pessoas verdadeiras. Embaralhei tempos. Queimei etapas. Um diálogo que deveria ter sido travado agora já havia feito décadas antes no momento que não sentia. Quantas vezes me declarei sem pesar cada uma das expressões? A palavra é tão sedutora, que podemos empregá-la mesmo sem necessidade. Não ter necessidade é desperdiçar a própria força do que podemos dizer em seguida, com urgência. Eu cuido das palavras como quem sopra a comida. Não pode esfriar demais, nem adoecer o céu azulado dos lábios.

Fabrício Carpinejar

Desenho animado

Quando a gente se gosta, a gente cuida. Cuida mais do que devia. Gostar é se prevenir do desgosto. A gente nunca sabe o que é suficiente, a gente vai se doando, se gastando, sem pedir troco. A gente gasta mais do que se tem e corre atrás para imaginar o que não se viveu para não fazer falta na memória mais adiante. Quando a gente gosta, é um exagero de gosto, é falar para levar o casaco porque pode fazer frio, é chamar atenção sem motivo, é fazer escândalo no telefone em pleno trabalho. Quando a gente se gosta, a timidez fica sem chances de escapar. Quando a gente se gosta, o que não se gosta é suportado com gosto. Quando a gente se gosta, a gente diz que nunca mais vai repetir e repete, porque gostar não é promessa, é quebrar promessas com os dedos cruzados nos lábios. Quando a gente se gosta, os segredos são música sem letra, adivinhação de pernas na mesa. Quando a gente se gosta, somos personagens do gosto mais do que autor dele. Não mandamos no gosto, o gosto nos suporta. Quando a gente se gosta, a gente começa emprestando um livro, depois um casaco, um guarda-chuva, até que somos mais emprestados do que devolvidos. A gente dorme uma noite fora de casa, duas noites, até que a gente leva a casa para dormir com a gente. Gostar é não devolver, é se endividar de lembranças. Quando a gente se gosta, pratica-se a arte de não ficar calado. A arte de não ficar calado é bruxismo de gente acordada. Os dentes ficam com fundo de prato para soprar a comida. Quando a gente se gosta, a neblina faz o rio encurvar mais cedo. Quando a gente se gosta, há sempre um nome na aliança contornado de sabão seco. A aliança faz espuma de mãos dadas. Quando a gente se gosta, tudo é importante, as inutilidades ainda mais. Quando a gente se gosta, come-se a luz de boca aberta. Quando a gente se gosta, guardamos os botões caídos das roupas como brincos. Quando a gente se gosta, a gente recomenda a nossa idade como a mais sábia. A gente gosta de ter razão, mas não ter razão só aumenta o gosto. Quando a gente se gosta, levar o lixo ou conferir se as portas estão fechadas é uma longa negociação de gostos. Quando a gente se gosta, separamos o feijão em uma bacia com água e ficamos com pena dos grãos debochados e incluímos juntos para a fome não ver. Quando a gente se gosta, é natural até se gostar menos para reservar lugar a quem gostamos.

Fabrício Carpinejar

Bolinhos de chuva

"A gente se cobra tanto que esquecemos de fechar a porta. Deveríamos nos pressionar menos. Aceitar que esqueceremos sempre alguma coisa a sair, de que é natural não se lembrar de tudo, de que não adianta se explicar, o melhor é viver sem sinalização. Tão simples. Extraviei a ingenuidade e não coloquei nada em seu lugar. Talvez minha ingenuidade fosse comer bolinho de chuva no sábado de tarde. Ingenuidade é quando temos vó para fazer nossos desejos. Depois, maduros, nossos desejos são bem mais difíceis. O cotidiano poderia ser mais líquido, menos temeroso. Trabalha-se para conseguir reconhecimento que se perde dentro de casa. Fica-se com a família para conseguir o reconhecimento que se perde no trabalho. É necessário pular do jogo de compensações, se permitir não ser bem informado, não saber o que acontece, não depender do tempo para definir o que fazer no dia. Ler um livro que não é lançamento. Ler uma revista velha de consultório de dentista. Cortar o cabelo diferente. Escolher um filme no escuro. Fazer palavras cruzadas com ajuda dos resultados. Tomar a cerveja da visita que não apareceu. Ligar para amigos sem um pretexto. Permanecer de bobeira, ingenuamente de bobeira. Não estocar, não se guardar, não se esconder, não esperar o pior, não xingar. Compreender que o outro pode estar falando a verdade, mesmo que a verdade não seja o que gostaríamos de ouvir. Tanto que recebi uma mensagem de um amigo que fala do distanciamento adulto, do isolamento adulto, que não é solidão, que é algo que nos adia até nos adiar novamente:
"Chega uma hora em que não nos esforçamos mais para aprender. Aprender o que o outro quer, o que o outro precisa. Tudo se torna causa própria: minha família, meus amigos, meu trabalho, minhas festas. E o resto que se dane. Eu lembro de minha irmã mais velha. Era ciumento quando pequeno. Interrogava seus namorados como um cão de guarda. Ela levava na brincadeira e ria da implicância. Eu me dava tão bem, não precisávamos ter alguma coisa em comum. Se ela chorava, eu não queria saber o motivo. Eu me juntava a ela como um pacto até ajeitar seus olhos. Eu dedicava minha vida para ouvi-la. Ela dedicava a sua para me entender. Ela me levava em seus passeios, por mais tedioso que é ter o irmão mais novo colado. E não sentia que estava incomodada, ela tinha orgulho de me apresentar o mundo. Alargou os padrões domésticos. Saiu de casa cedo, fez minha primeira festa aberta aos amigos, me ensinou a dirigir, me deu dicas de como me comportar com as mulheres (o que convenhamos, não deu muito resultado). Passou em primeiro lugar na universidade, era inteligente a ponto de tornar qualquer sucesso dos seus irmãos um tremendo esforço. Ela fazia as provas e os testes sem estudar. Nada parecia complicado. Ela cresceu, teve filhos, casou. Eu cresci, tive filhos, casei. Hoje não há alegria, não há comoção das diferenças, não há compreensão. Não nos prendemos ao telefone e acabamos estranhos, indiferentes, medrosos. Ninguém comemora o sucesso do outro. Nossos filhos não brincam juntos. Não dividimos casa na praia. Como telegramas, só nos comunicamos nas tragédias. As diferenças sociais e de classe nos afastaram. Ela apenas fala de trabalho e viagens, do que gasta e não gasta. Eu não sei o que falar. Cada um procura sua mãe para reclamar, que é a mesma."


Fabrício Carpinejar

Onde eu errei?

Em um dia sem outro igual, um homem joga tudo para o ar, a família, a mulher, a casa, para depois voltar em paz. Não tão previsível, a mulher explode todo dia para não se acostumar com a paz. O homem não abandona tudo sozinho. Arruma um cúmplice, alguém para o elogiar e suportar a autocrítica. A mulher só depende de si porque assim a ensinaram e, quando parte, dificilmente retorna. "Onde eu errei?", essa é a pergunta banal depois de todo fim de relacionamento. Eu a faria do seguinte jeito: "onde eu acertei?" Conhecer as falhas não vai ajudar em nada o exame, pois somos tomados de complacência e não há como garantir o discernimento sobre o que representamos. Enfrenta-se uma intoxicação, o sacrifício da verdade pela vaidade. O orgulho toma o lugar do que seria de direito da dor. Perdoa-se a si para não perdoar o outro. Pior: tenta-se desmerecer o par que rompeu para que ele perca a credibilidade de contar teus erros, teu egoísmo, tua falta de vocação. A intimidade que tanto nos orgulhávamos será o motivo de pânico depois. Nossa facilidade em enxergar o estrago que fizeram com a gente não nos permite enxergar o mal que podemos ter feito. Fica-se irritado com que deixamos de ser mais do que daquilo que fomos. Toda a relação acaba quando a memória do que não aconteceu é maior do que o desejo. Quando se escolhe desacontecer para agradar as conveniências da mulher ou do marido, ajustando os amigos e os conhecidos a uma prévia lista de selecionados inofensivos, que não questionam, muito menos discordam. Podando-se o entorno e as circunstâncias, a transparência escapa. Nenhum homem, nenhuma mulher consegue ser doméstico em turno integral. Lembrar é falar, antes de escutar. Se escutássemos a recordação, ao invés de legendá-la ou rascunhar datas, poderíamos ter sinceridade com que passamos. Os casais se contentam com a lealdade, nunca chegando a atingir à fidelidade. Ensinaram-me que ser homem era um trabalho. Tinha que me devotar como a um emprego, que deveria aprender a dirigir cedo, a namorar com indiferença, a mijar nos muros, a responder à realidade com força e persuasão. Meus amigos perderam a virgindade em casas noturnas e saíram de lá como uma missão cumprida. Como uma circuncisão, a formalidade de um objetivo. Como uma manada que aprende a correr sem duvidar do corpo. Ensinaram-me que deveria amar também como um trabalho. Fazer família significava mais uma tarefa de ser homem. Eu rompi comigo, nunca mais regressei, nunca mais me revi. Existe a percepção de lembranças solteiras, restos e emoções que nunca foram casadas ao longo de uma vida a dois. Dói constatar que algo da individualidade não foi tocado, descoberto e permaneceu inatingível. Talvez nem mais saibamos como chegar a esse arquipélago desconhecido. Dói verificar que o que se levou do casamento foram dez quilos a mais.


Fabrício Carpinejar

Não acredito em quem não se desacredita ao menos uma vez

Não acredito em quem confia demasiado em si. Quem nunca extravia a conversa, o jeito da vida, o sentido. Quem nunca se duvida antes de rezar. Quem nunca reza para se distanciar. Quem nunca desistiu de procurar termos no dicionário. Quem nunca se endivida antes do salário. Quem nunca perdeu uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Não perdeu o emprego, não perdeu um parente, não perdeu a paternidade de si mesmo. Não acredito em quem fala dos outros com convicção, com domínio e técnica, com destreza de faca e agulha. Não acredito em quem não se critica, não se perdoa, não volta atrás. Não acredito em que se julga maior do que a própria vida e se submete às comparações para subir a estima. Não acredito em quem não consulta a meteorologia para apenas constatar que não choveu na noite seguinte.
Não acredito em quem enxerga a literatura como uma religião, os livros como mais importantes do que os filhos, os autores como deuses inquestionáveis. Não acredito em quem não se encolheu ferido, derrotado, acuado, mínimo. Não acredito em quem não tem fé para atravessar o rio a nado. Não acredito em quem não considera a possibilidade de fracasso. Não acredito em quem não lê os obituários na velhice. Não acredito em quem não revê suas fotos para se espalhar. Não acredito em quem capricha na letra. Não acredito em quem não modifica sua infância ao avançar. Não acredito em quem não esquece a data ao preencher o cheque. Não acredito em quem ultrapassa o sinal fechado sem medo. Não acredito que o submisso no trabalho não é estourado em família e que o estourado no trabalho não é manso em casa. Não acredito em quem não recusa ao menos três frutas antes de escolher. Não acredito nas verdades que não são mastigadas em silêncio, na arrogância que fala com a boca cheia. Não acredito em quem não olha para sua mulher e teme não merecê-la. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de trabalho. Não acredito em quem não se sente culpado pelo excesso de família. Não acredito em quem não passa numa praça ensolarada sem querer sentar. Não acredito em quem não vacila, não se desespera, não prensa o pulmão contra a parede de um relógio. Não acredito em quem professa ensinamentos com indiferença. Não acredito em quem mendiga culpados para sua raiva. Não acredito em quem usa chapéus dentro de casa. Não acredito em quem não foi deserdado em algum momento e fez das ruínas seu começo e seu final. Não acredito em quem é tão cheio de si, com tantos medos dos outros. Não acredito na literatura que não seja desconfiança. Não acredito que o desejo não possa se repetir. Não acredito em quem não tem receio da morte. Não acredito, confesso que não acredito muitas vezes por dia.


Fabrício Carpinejar

Perdi mulheres

Perdi Alice porque ela me achou baixo. Perdi Lisa porque minha língua mancava na infância.
Perdi Rita porque era seu melhor amigo. Perdi Gisele para meu melhor amigo.
Perdi Renata porque ela mudou de estado. Perdi Ivana porque escrevi cartas de amor e não tive coragem de mandar.
Perdi Maria por um apelido. Perdi Fátima quando pichei o muro de sua residência. Perdi Caroline porque fumava.
Perdi Sandra ao perder seu livro de Português. Perdi Débora ao pedir cola. Perdi Rosa pela asma.
Perdi Cristina pela catapora. Perdi Rose porque troquei de escola. Perdi Josélia por não aprender inglês.
Perdi Viviane porque não jogava vôlei. Perdi Marisa na parada de ônibus. Perdi Carla ao buscar cerveja.
Perdi Cristina quando demorei a dançar. Perdi Cristiane por um surfista na praia. Perdi Estela no fim de uma festa.
Perdi Bruna ao atravessar a rua. Perdi Luciana por não telefonar. Perdi Laura ao me casar.
Perdi Ângela por ela estar casada. Perdi Márcia por não insistir. Perdi Mariana por insistir.
Perdi Sonia na fila do banco. Perdi Marta por não puxar conversa. Perdi Cíntia ao ir ao banheiro.
Perdi Lisiane por sono. Perdi Lisa por ressaca. Perdi Manuela pelo mau humor de manhã.
Perdi Amanda por insegurança. Perdi Janete por excesso de confiança. Perdi Bárbara em um filme polonês.
Perdi Bianca pela falta de cabelos. Perdi Fernanda porque ela não gostava de barba.
Perdi Janete pelo jogo de futebol. Perdi Dulce por ciúme. Perdi Teresa por duvidar dela.
Perdi Gabriela por criticar suas músicas. Perdi Fabrícia pelo nome parecido. Perdi Paula ao odiar seus pais.
Perdi Deise para meu irmão mais velho. Perdi Cátia para meu irmão caçula. Perdi Denise ao não segurar sua mão.
Perdi Ester pelo atraso. Perdi Flávia porque ela queria ter filhos.
Perdi Tamisa porque eu queria ter filhos. Perdi Tânia quando ela trocou os graus de seus óculos.
Perdi Joana para sair com os amigos. Perdi Milena por fazer pouco caso de sua dor.
Perdi Geórgia ao comer de boca aberta. Perdi Regina pela solidão. Perdi Vitória por fofoca.
Perdi Jordana por não suportar discutir o relacionamento. Perdi Lídia porque ficava em casa.
Perdi Beatriz porque não voltava para casa. Perdi Elisa porque envelheci a fé.

Perdi mulheres pelas dúvidas que recebi de minha mãe e deixei para resolver depois.
Perdi mulheres pela teimosia em antecipar as falas. Perdi mulheres por acreditar que eu amava o suficiente.
Nunca é suficiente. Perdi mulheres ao mentir que não trairia. Perdi mulheres para me fazer de vítima.
Perdi mulheres porque em algum momento não estava em mim e coloquei travesseiros debaixo da coberta e fingi
dormir enquanto fugia.

Perdi mulheres por descuido. O homem é um descuido.


Fabrício Carpinejar

Conte-me o final dos filmes

Conte-me os finais dos filmes, eu não me importo. Eu esqueço os finais dos filmes. Nunca guardo o que acontece no enlace. O final do filme é o menos importante. Não entendo como embaralho os finais como se fossem começos. Minha memória não é fotográfica, ela corre a letra e não me entendo depois. O que eu fiz com os finais dos filmes? Os livros me influenciam e não me deixam concluir. Não posso concluir o que adivinho. Eu transformei os finais dos filmes em livros que não escrevi. Gosto que me digam o final antes de assistir o filme. Eu vou esquecer assim que assistir. Conte-me o final de minha vida, eu não me importo. Ciganas, fadas, bruxas não me apavoram. Não vai mudar o que farei. O final da vida não altera meu endereço. Não altera a fome que havia na vida. O ácido da boca. A hortelã da boca. O susto de estar errado. O acerto inesperado. Não vai alterar a ordem da rotina, a ordem da minha higiene: se tomo primeiro o pente, depois a navalha, depois a escova, depois o cortador de unhas. Não vai alterar minha dieta, minha receita médica, a cor de minha língua. Não vai alterar as sete quadras que atravesso para chegar ao banco, o modo de discordar da luz. Não vai alterar o cheiro da grama com a chuva. A impureza dos ouvidos. Não vai alterar a reposição da aguardente no bar. O suor das árvores. A manchete do jornal que não lerei. Conte-me o final do livro. Não vai alterar o desejo feito de começos. O começo do desejo no desejo. As tardes lentas do domingo. Os cabelos lentos da filha. Não vai alterar o modo como viro a página, o modo como troco de assunto. Não vai alterar a floresta reduzida a um ninho. O ninho reduzido a uma asa solteira. Não vai alterar a evaporação das uvas. O número de amigos. Não vai alterar o horário das missas, dos cinemas, do nascimento. O final do livro não vai alterar o autor e sua insuficiência. Não vai alterar o que não se enterra no final.


Fabrício Carpinejar

O que um homem quer?

O homem não quer nada, quer descobrir o que quer no meio do caminho. O homem não quer ser elogiado em excesso, senão pensa que é deboche. Quer dormir por nocaute, não por escolha. Quer viajar o suficiente para não voltar a ser ele mesmo. O homem quer chamar atenção em público, ficar quieto a dois. Não quer o meio-termo. Quer falar mais do que devia, calar mais do que podia. Não quer se explicar quando está errado. Quer ser explicado quando está certo. Quer magoar sua mulher criticando a sogra. Quer se magoar provocando ofensas. Quer concordar para resolver depois. Quer surpreender com o número errado. Quer ter a razão quando falta o desejo. Quer jantar com calma, almoçar rápido. Quer o passado perto como um abajur. Não quer mistérios, quer segredos para contar aos amigos. O homem quer um violão para esconder suas dores. Quer sair para poder voltar. Quer conversar de noite para diminuir a culpa. Quer uma gaveta para amontoar a infância. Quer mostrar disposição quando está cansado. Quer consolar para evitar o choro. Quer sexo quando fala em amizade, quer amizade quando fala em sexo. Quer se duvidar ao extremo para se confirmar em seguida. Quer pescar para mostrar paciência. Quer o emprego do outro, o prato da outra mesa. Quer fingir que sabe o que não entende. Quer entender durante a conversa. Quer fazer sofrer o que ainda não sofreu. Quer chorar e soluça. Quer amar sem começo. Quer casar sem papel. Quer ter um confidente para não se trair. Quer rir alto sem trocar a marcha. Quer usar suas roupas até gastar. Quer ter seus lugares prediletos. Quer privacidade em banheiros públicos. Não quer ser convidado a carregar peso. Quer dançar sem comentários. Quer beber sozinho sua ressaca. Quer escutar seu nome para voltar ao papo. Quer jogar futebol para diminuir a idade. Quer se contestar quando não há dissidências. Quer a última palavra. Quer ser desejado por vaidade. Quer a fama ainda que seja mentira. Quer chegar atrasado para não ficar esperando. Quer esperar na porta para não se arrumar. Quer fingir pressa para não desabafar. Quer pular o domingo. Quer se arrepender do que não fez. Quer ser esquecido do que ser vagamente lembrado. Quer que a mãe não conte suas manias e apelidos no jantar de família. Quer iniciar o que não terminou. Quer interrogar o próprio ciúme. Quer desistir das expectativas. Quer expectativas para não desistir. Quer receber visitas na hora errada. Quer telefonar para não dizer nada. Quer amar os filhos como se fosse um filho. Quer ser pai de seu pai. Quer orar nos ouvidos do mar. Quer ser ilegível para deixar dúvidas. Quer morrer de mãos dadas. Quer viver sem trégua. Quer adivinhar sua mulher pela respiração. Quer a aparência de uma aventura. Quer disciplinar a chuva. Quer ter uma árvore para atravessar o rio. Quer transformar seu dever em direito. Quer enganar sua fome. Quer escrever para não publicar. Quer arrancar os dentes do relógio. Quer esticar o elástico da terra. Quer reservar os olhos como uma mesa. Quer ser a paisagem da cidade durante o dia. Quer dominar seus impulsos. Quer se reconhecer na neblina. Quer seguir o rio que secou. Quer se aquecer no que não tem significado. Quer se sentir inteiro ao desfazer a bagagem. Quer dobrar o sol como uma carta. Quer que a água continue seu cabelo. Quer recuar para se repartir. Quer avançar para se repetir.


Fabrício Carpinejar

O que uma mulher quer?

Uma mulher não quer que o homem fique perguntando toda hora o que ela quer. Ela não quer ser definida, mas compreendida. Não pretende discutir relacionamentos no fim da noite, mas os filmes que ainda vai assistir, as expressões que ainda vai aprender. Uma mulher escolhe inúmeras vezes a roupa não porque é volúvel ou tem dificuldades de decisão, mas para ver seu corpo em seqüência. As roupas são o espelho, o espelho não é o espelho. O que a mulher quer está longe de significar um controle remoto, ela deseja que seus ouvidos sejam rezados com insistência, em voz e vela baixas. Ela deseja que o homem adivinhe seu desejo. Que fale palavras rudes com ternura, que fale palavras ternas com violência. Que a paixão seja inventada, não datilografada em sinais e segunda via. Porque quando uma mulher goza sai de seu corpo, o homem fica em seu corpo a assistindo. O que um mulher quer é visitar a mãe sem medo da mãe. Falar com o pai sem medo do pai. A mulher quer a inocência do medo da infância. O que uma mulher quer é uma piada que a faça rir bonita, não uma piada que a faça rir de qualquer jeito. O que uma mulher quer é que o homem feche a porta de noite para ela abrir de manhã. Ela quer ter um filho para não se matar de amor por uma única pessoa. Uma mulher quer a esperança de não ser ela, ao menos mensalmente. Ela quer falar com as amigas o que um homem não sabe ouvir. Ela não quer que o homem mude de assunto porque não o interessa. Quer que o homem entenda que nem sempre ele é seu assunto preferido. Ela quer dançar para outros homens para chamar o seu para perto. Ela quer dançar sem pensar que dança. Uma mulher quer ser restituída de seus erros. Uma mulher quer percorrer a saudade e não se abandonar. Uma mulher quer Deus estendido como uma praia vazia. Uma mulher quer ser perfeita dentro de suas imperfeições, detalhista em suas expedições pelas sobrancelhas. Uma mulher quer conversar para se perseguir. Quer ser olhada nos olhos, na cintura dos olhos. Quer que a janela se incline como um girassol. Quer ser a paisagem de sua cidade à noite. Quer ir vivendo o que não entende. Quer dizer o que sofre para não sofrer do mesmo jeito. Uma mulher quer descer do mundo em movimento. Ter sonhos eróticos para embaralhar as lembranças da semana anterior. Criar uma outra mulher dentro de si que a contraponha. Que seja legível como um pássaro no escuro, um rio no escuro, uma fruta na água. Uma mulher quer se sentir pressentida ao andar de costas, nunca chamada ou assobiada. Uma mulher quer descansar com afeto, sem intenções outras, ter os cabelos alisados e um colo, para perdoar o dia. Ela quer que o homem a ajude a enterrar o passado com direito a uma cruz e um nome. Que a ajude a desenterrar o futuro. Ela quer andar no mistério, mas de mãos dadas. Ela quer ser surpreendida com um beijo nos ombros, agradecer um espanto. Ela quer que a felicidade não seja permissão. Ela quer conferir se tudo vai dar certo para errar com vontade. Ela quer descobrir o que a vida quer dela nem tarde ou cedo demais. Ela quer que o homem feche as antigas relações e os frascos do banheiro. Uma mulher não quer que o homem fale por ela, como eu tentei fazer.


Fabrício Carpinejar