Pedaços Humanos

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Os amores de verdade são mais bonitos

Mais fácil imaginar o que nunca foi do que o que teve laço marcado e contado em retratos, álbuns e um punhado de lembranças. Mais fácil pressupor que os amores que não foram seriam mais fortes, mais duradouros e, quem sabe, mais amados. Mais fácil viver uma vida de “e se…” quando os amores que já foram sofrem de um abandono romantico gradual. É que a gente não é justo na memória e vai sempre achar que os amores que nunca aconteceram foram os mais bonitos.
Um misto de imaginação e expectativa gostosa faz com que a gente projete naquela possibilidade de amor distante um tipo de afeto memorável. Pros amores que nunca existiram, a gente ainda tem cama. Tem casa, quarto e espaço. Tem pedido de desculpas e um imaginário que deixa a gente bobo pensando ainda que podia ter sido o grande amor das nossas vidas. Pros amigos, a gente sempre seleciona as melhores histórias de amores que sumiram de um dia pro outro, de alguém que a gente amou à primeira vista ou de um daqueles dias que nunca viraram dois. A nossa recordação afetiva é meio injusta com os amores que ficaram.
Os que ficaram, viveram e provaram que mereciam espaço. Tiveram que aguentar a convivência, nem sempre pacífica e razoável, de uma companhia escolhida e acolhida por pura e própria vontade – e talvez por amor. Ficaram, bateram o pé e tiveram seus dias de luta e de glória. Com bom dia e boa noite. Com batida de porta e gritaria. Com choro ou sorrisinho bobo. Com adeus e até um dia desses. O que a gente não enxerga é que os amores reais também são bonitos. E por terem sido reais e terem trazido pro nosso dia-a-dia um pouco daquele sentimento que a gente sempre esperou utilizar, dar e receber dos amores do talvez, eles merecem da gente uma beleza para além da imaginação. Papo de romantismo real, sem o aspecto ilusório que a gente cria sempre que começa a se apaixonar por alguém ou pensa em como teria sido construir alguma coisa com alguém que nem fez questão de ficar – ou não ficou porque nunca existiu de verdade.
Os amores de verdade são mais bonitos porque dariam filmes, novelas, histórias de cinema que as pessoas não costumam contar. Eles fogem do senso comum e vivem de acordo com cada par que se encontra por aí. São mais bonitos porque têm a sua forma de expressar o que sentem e o que não sentem e são independentes da imaginação para tirar um sorriso da gente ou pra fazer um dia feliz. Amores reais não precisam ser sonhos pra fazer a gente sonhar – e você nem precisa fechar os olhos pra tê-los. Eles tão ali e se responsabilizam por tudo o que acontecer a dois. Pagam o preço e bancam o terreno deles. E vivem. E escrevem palavras na nossa pele que significam mais do que possíveis histórias que a maioria de nós criaria com algum tempo ocioso e com alguma pessoa que a gente nem chegou a conhecer de verdade. Esses amores não são scripts rodados nem clichés literários. Eles se apresentam nus, com estrias, celulites e luz acesa. Assim, de pronto, de choque, com toda a verdade bonita e feia que poderiam ter.
Se você pensar bem, os seus amores reais renderam as melhores coisas. As melhores lembranças. Muitas. Muito mais do que qualquer outro amor que você não tenha vivido. Renderam até dores – mas dores reais, com motivos, razões e discussões que existiram de verdade. E, querendo ou não, acho que eles merecem o seu lugar preferido na memória, ainda que a gente precise de imaginação pra deixar as coisas menos fora da rotina e mais interessantes. Como diria Chico, amores serão sempre amáveis. Mas os amores reais serão sempre as pessoas que resolveram amar a gente de verdade, sem precisar imaginar como teria sido.

Daniel Bovolento

Não é culpa sua

Não adianta. E eu não sei se é conspiração cósmica ou azar do destino, mas não adianta. Você não vai gostar de alguém só porque alguém gosta de você. E olha que pode ser aquele seu tipo perfeito, feito realização dos seus rascunhos detalhados sobre como seria o homem ou a mulher da sua vida. Pode ter todas as qualidades, os traços físicos, os olhos claros, os quase dois metros de altura, o piercing no nariz e o que mais você tiver imaginado. Não adianta muito.
E daí te culpam por isso. Por não ter tido estalo. Por não ter tido encanto. Por não ter rolado aquele brilho nos olhos ou aquele friozinho na barriga que você sempre sabe que sente quando conhece alguém com potencial pra acampar na sua vida antes de entrar de vez na sua casa. Culpam você e culpam o seu dedo podre. Porque você só gosta dos tipos errados, dos tipos não correspondidos, dos tipos imaginários, dos tipos de tempos desconectados e de todos aqueles tipos que, supostamente, você não deveria gostar. Pior ainda é quando te culpam por não gostar de quem gosta de você. Será que eles não percebem que dói tanto na gente quanto em quem a gente não gosta nesses casos? Porque parece que a gente faz por mal. Que a gente espera mesmo sofrer ou viver de desamores, vagando por aí e se alimentando dessa coisa vazia de relacionamentos sem futuro. Porque culpam a gente como se fosse fácil ver quem nos quer bem indo embora, com as mãos vazias – e a gente com o coração na mão quando sabe que podia ter feito alguém feliz.
Ele ou ela te ama. Bacana. Mas você vai fazer o que? Vai viver o amor do outro (e pelo outro) e abrir mão do seu só porque alguém diz que você pode escolher amar alguém se empregar um pouco mais de esforço? Às vezes até funciona, às vezes é só perda de tempo e estrago desnecessário de coração. Não se tomam amores que não são nossos. A gente não pode pegar e viver o sonho de alguém, muito menos o amor que não é criado pela gente. E haja dedo podre. Será mesmo? Ou será que a gente não tá só tentando, como todo mundo, encontrar alguém no meio desse vasto espaço que faça algum sentido perto da gente? Sou inclinado a pensar que é essa a opção e que a gente não é tão egoísta assim. Se bem que, no amor, não rola muito ser altruísta quando a gente não consegue amar alguém. Amor que pede esforço pra sentir não é amor. É alguma outra coisa e pode até ser bonita, mas não é amor.
Então, se for pra amar alguém de volta, que seja de um amor que partiu de você. Que foi criado ou conquistado e que mexeu com você de alguma forma que tenha te feito sentir além de uma boa companhia. A gente vai continuar tentando e sabe-se lá se um dia chega ou não. Sabe-se lá se um dia a gente acha ou se perde de vez (e se acha perdido). Mas pega essa culpa que você sente por achar que tá se esforçando pouco e esquece. Pega essa coisa que tentam empurrar pra você como uma necessidade de aceitar o que vem só porque pode ser bom ou legal e pensa que amor não foi feito pra contentamento. É pra se encantar e pra ter algum sentido além dessa coisa do gostar de alguém. Pensa naquele trecho do As Vantagens de Ser Invisível e leva como lema, porque a gente realmente aceita o amor que a gente acha que merece. A verdade é que “the greatest thing you’ll ever learn is just to love and be loved in return”. E relaxa. A culpa não é sua por querer ser feliz com um amor que seja seu.

Daniel Bovolento

sábado, 13 de abril de 2013

Intolerância

Uma das principais características que diferenciam os humanos dos outros animais é que temos a capacidade de nos colocar no lugar do outro indivíduo. Ao nos imaginarmos na pele de outros seres, nosso instinto de compaixão é aflorado – a dor do outro dói na gente. No entanto, numa realidade regida pela competitividade e pelo cultivo do ego, é possível observar que, a cada dia mais, temos deixado de praticar o nosso lado tolerante, e parece que o instinto da tolerância em algumas pessoas tem estado mais atrofiado do que articulação com reumatismo.

A intolerância – que é a falta de respeito pelas ideias, crenças ou práticas dos demais sempre que essas sejam diferentes ou contraditórias às nossas – tem ganhado sustância principalmente na era digital. Como temos uma imagem que nos representa virtualmente e que muitas vezes nada tem a ver com quem realmente somos, é preciso se destacar entre a maioria. E uma das formas mais rápidas de ser visto, notado e compartilhado – vícios da era digital – é criando polêmica, muitas vezes criticando uma ideia, posicionamento ou opinião do outro. Talvez a ausência de necessidade de olhar nos olhos enquanto se faz uma crítica, já que é possível dizer o que quiser do conforto do seu lar sem ser verdadeiramente visto, dê mais coragem para os intolerantes crônicos.

Todo mundo já conheceu um intolerante crônico. É aquele que vive de apontar “erros” alheios (entende-se por erro tudo aquilo que se diferencia do que ele pensa). É aquele que blasfema, xinga e manda pra putaqueopariu sempre que tem seu ego de classe média abalado por um ponto de vista do qual ele discorda. Pra ele, o contexto do tema não importa – ele vive em busca de migalhas, caçando erros alheios para que possa esfregar na cara do mundo como as pessoas são burras e estúpidas e como ele é inteligente. Esse é aquele sujeito que assiste a um filme só procurando uma falha na edição. É o que vai à festa de casamento, come e bebe todas e vai embora falando mal da coxinha. É o que lê por cima um comentário no Facebook sobre algo com o qual ele não concorda e já desce a lenha sem nem saber direito qual o contexto. É o sujeito que acha cruel caçar a sua própria comida, mas que paga alguém pra fazer o serviço sujo para ele, de modo a garantir que lhe não falte o bife à milanesa de cada dia.

O intolerante crônico também se aproveita das minorias. Ele diz que casamento gay vai atrapalhar o funcionamento da sociedade só porque ele não é gay. Diz que maconha medicinal não pode ser aprovada, só porque ele não tem uma doença terminal para qual ela seria um santo remédio. É contra pesquisa com células-tronco, porque não está sua vida toda numa cadeira de rodas quando já existe uma solução para o problema que está barrada por questões morais. Acha cotas para negros em faculdades um absurdo e espalha depoimentos revoltados de que todo mundo tem chances iguais, só porque ele não nasceu na favela e não teve que largar a escola pra trabalhar vendendo balas no semáforo aos sete anos. Se alguma luta de outro grupo é por algo que não afetará a sua vida, ele simplesmente vai contra – só pra garantir. Esquece que todo mundo um dia será minoria em alguma situação.

Ele domina a arte do “mi-mi-mês” e só vê defeitos, ao mesmo passo em que ignora as qualidades alheias. Se acha incrivelmente bom e evoluído ao ponto de julgar as escolhas dos outros, mas, enquanto ninguém o vê, varre toda a sujeira da sua vida pra baixo do tapete. Arma o cenário, coloca o sorriso no rosto e posta no Instagram um retrato da sua pobreza espiritual.

O fato é que não existe verdade absoluta – o mundo se revela pra gente da forma como escolhemos enxergá-lo. Às vezes, o lado pejorativo de alguma coisa que nos incomoda está na nossa mente. Talvez o que te revolta tanto no outro seja apenas um espelho de algo seu que lhe é desconfortável. Por isso, antes de esbravejar por algum comportamento ou atitude alheia diferente da sua, é sempre bom refletir sobre motivo pelo qual aquilo de incomoda tanto. As melhores respostas vêm quando a gente fecha a boca e escuta a voz de dentro.

Quando enxergamos almas, em vez de somente corpos, nos tornamos mais humildes, mais sensíveis, mais colaborativos e menos egocêntricos. Por isso, fica aqui um manifesto por um mundo mais tolerante. Um mundo no qual um ser não mata o outro ser somente porque não consegue conviver com o fato de que o outro tem uma orientação sexual diferente da ele. Um mundo no qual as pessoas usem mais essa dádiva exclusivamente humana de poder se colocar no lugar do outro, e finalmente coloquem em prática a primeira lei que deveria constar no Código Penal da consciência de cada um: só faça com os outros o que gostaria que fizessem com você. Um mundo no qual as pessoas deixem de ver somente o externo e, antes de julgar, lembrem que ali, por trás do físico, existe um outro ser com tantas dores e amores quanto você, tentando encontrar um caminho nessa louca trajetória da vida.

Enfim, fica o nosso manifesto por um mundo onde prevaleça a essência de um cumprimento usado no sul da África no qual as pessoas falam:

- SAWABONA (“eu te respeito, eu te valorizo, você é importante para mim“)

e ouvem de volta:

- SHIKOBA (“Então eu existo para você“)


Casal sem vergonha blog



sexta-feira, 12 de abril de 2013

Eu não te amo pra sempre


Eu tenho medo do pra sempre. O pra sempre é o vilão que insiste em transformar relações que foram felizes em fracasso diante dos olhos alheios. Paro e penso quanto tempo dura o pra sempre. Onde fica esse lugar do qual a gente passa a vida toda falando, a vida toda sonhando. De fato, nunca conheci alguém que tivesse estado lá. O pra sempre tem cara de mentira consciente. A gente sabe que não sabe chegar lá. Tentamos inventar caminhos, usar o GPS, pedir informação. Mas ninguém sabe informar.

O pra sempre virou quase expressão automática, que nem o Graças a Deus. A gente fala muitas coisas que não achamos que sejam obra de Deus – não estávamos exatamente agradecendo, mas quando vimos saiu. O pra sempre é assim também. Vou te amar pra sempre. Quero você pra sempre. Sempre que pronuncio uma dessas frases, meu cérebro alerta para a besteira que acabei de dizer. Não seja ridícula, ele afirma. Pra sempre é uma coisa distante demais, longe demais. Porque eu nem sei se vou acordar amanhã. O quadro que enfeita meu quarto, e que só encaixou em cima da minha cama, pode despencar a noite e partir minha cabeça em duas. E comigo, vai-se o pra sempre. Ou eu posso acordar e receber uma ligação sua dizendo que não me ama mais. Que não sabe o que aconteceu. De repente, acha que meu beijo ficou molhado demais. Ou que a forma como falo e mexo no cabelo está te dando nos nervos. E aí vou chorar pitangas no canto, eu e o pra sempre.

E, por isso, tenho que dizer que não te amo pra sempre. Te amar pra sempre é pesado demais. É responsabilidade demais. Não sei se aguento o fardo, não sei se dou conta. Não gosto de meias promessas. Mas posso te oferecer o meu amor de hoje, assim como fiz com o amor de ontem. Todos os dias quando acordo, penso que sorte tenho de estar viva. Mais uma noite em que o quadro manteve seu posto de decoração, invés de se tornar um assassino. E penso também em você. E penso, como tenho pensado há algumas centenas de dias, que te amo. Poderia ser diferente. Poderia não amar mais. Mas te amo.

E acho que amor seja que nem um carro – precisa de combustível pra funcionar. Se você não abastece, ele te deixa na mão em meio à Marginal às 6 da tarde, enquanto você ia pra aquela reunião importante. E não adianta xingar os quatro cantos, achar que a vida é injusta, que nada dá certo pra você. Você não colocou combustível. Menosprezou as necessidades do carro, assim como menosprezamos as necessidades do amor. Amor precisa de alimento. Não ache que ele dura pra sempre se você não cuidar. Amar dá trabalho mesmo. É que nem cachorro. Dá um trabalho enorme, mas você automaticamente esquece dos xixis no sofá ou do tapete rasgado quando ele te olha nos olhos e te tasca uma lambida. Aí você tem certeza que valeu a pena.

A gente combinou que não mentiria para o outro. E eu não posso te dizer que vou te amar pra sempre. Estaria quebrando o contrato. E não quero te ouvir dizer que me quer pra sempre. Não gosto de identificar uma mentira em meio a todo o resto que considero verdadeiro. Quero sim ouvir eu-te-amo. Muitos deles. Mas preciso ter a certeza que cada vez que um eu-te-amo sai da sua boca foi porque, naquele exato momento, você está me amando muito. Porque cada eu-te-amo que solto, vem naqueles momentos em que o amor é tão grande, que não cabe dentro de mim. Não cabe também dentro dos beijos. Nem dos carinhos no seu cabelo...

E, nesses momentos em que te amo demais, me dá uma vontade imensa de dizer que te amo pra sempre. Que vou amar pra sempre aquela conchinha gostosa. Que vou amar pra sempre o jeito como você me pega com força e me abraça com seus braços grandes. Que vou amar pra sempre seus conselhos que sempre se provaram coerentes. Que vou amar pra sempre quando você percebe que eu estou sem sono e faz aquele carinho infalível na minha nuca, pra eu pegar no sono com você. Mas me seguro, porque não quero mentir pra mim e nem pra você. Não consigo imaginar o dia em que não mais amarei cada pedacinho seu. Mas a experiência me provou que dessa vida, nada sei.

Hoje eu vibro com cada uma dessas coisas que me fazem te amar. E sei que te amo porque você tem a capacidade de fazer cada célula do meu corpo vibrar como ninguém mais conseguiu. Mas não posso te dar o que não possuo – o meu amor futuro. E talvez a incerteza do sentimento – do meu e do seu – seja justamente o combustível do meu amor. Sei que amo hoje. E sei que você não me pertence. Sei que estamos juntos nessa trajetória emocionante da vida porque assim queremos. E que assim seja enquanto as mãos dadas nos fizerem felizes.

Jaque Barbosa

quarta-feira, 10 de abril de 2013

Ela não vai voltar


Coloque de vez na sua cabeça: ela não vai voltar. Não existe essa história de querer voltar no tempo, nem de remoer o que já foi e o que não volta mais. O que há de vir tem muita força, eu sei. Mas o que já foi… Ah, o que já foi levou o que eu tinha e o que eu tinha planejado ter por um longo espaço de tempo. É como se tivesse deixado o meu caderno de viagens rascunhado em algum lugar e alguém o apagasse, página por página, como se nenhuma daquelas memórias tivesse existido. Não adianta se matar pra resgatar umas memórias esboçadas, meio sujas, de muito tempo atrás. É tudo areia movediça armada secretamente como uma armadilha para te levar pro fundo do poço de uma só vez. Pior ainda é quando foi ela mesma quem bateu a porta e deixou a chave para você dar de cara com a casa vazia sem nenhum bilhete de despedida.
Encha o copo mais uma vez antes de perceber que ele nem estava vazio. Isso é ansiedade, eu sei. Eu tenho que me ocupar com alguma coisa pra não deixar a cabeça vazia pensando no que já foi. Meu masoquismo sentimental vive em crise ano após ano. Chega o aniversário dela e eu relembro o ano que foi nosso. Chega um e-mail qualquer com um “boa tarde” cordial e eu me lembro do que o nosso acabou num nó desatado. Não é aquela dorzinha gostosa que a gente sente de vez em quando e que a gente guarda só pra lembrar que tá vivo. É constatação de que já foi e já era, sabe? Até eu que tenho tentado parar de fumar por conta de uma alergia boba resolvo acender um cigarro e apagar a luz da varanda pra tentar pensar melhor nisso tudo.
Todo amor, por menor que seja, deixa uma impressão. Eu esbarro em você na esquina e reajo de alguma forma imprevisível. Não tem como tratar como desconhecido quem um dia já foi o alvo das suas cócegas, a tua ligação de madrugada ou o teu pedido de socorro. Não tem como passar uma borracha e seguir em frente por inteiro. Superar é uma coisa, esquecer é outra e apagar é um processo completamente impossível. Mas, pra mim, o problema mesmo é quando ela se reflete nos rostos das outras mulheres. É besta, eu sei. Só que é como se todas elas pudessem me prometer o que mesmo que ela e, ao mesmo tempo, nenhuma delas fosse suficientemente hipócrita para fazê-lo (porque não conseguiriam cumprir). E essa é só mais uma das tantas vezes que eu tento dizer pra mim mesmo um “vai lá, deixa disso e queima a foto, deixa de ouvir essas músicas, pensa em outra coisa e aproveita a juventude”, mas acho que envelheci uns trinta anos com essa coisa constante de acordar no meio da noite e gritar por ela. A tarja preta não faz mais efeito e a terapia já me deu o veredito: ela vai acabar com você aos poucos. Quem disse que eu me preocupo com isso?
Sempre que ela reaparece, de alguma forma, ela me estraga. Tenho a impressão de que, por mais que a gente tente se enterrar, ela sempre vai causar uma dessas reações estranhas em mim. Sim, a gente tenta se enterrar. Pelo menos eu cultivo essa ideia de que eu também representei um fardo e espero que ela tenha tido algum trabalho ao jogar tudo fora. Acho que eu não suportaria descobrir que pra ela foi fácil, rápido e indolor. Prefiro pensar do meu modo e até espero que ela apareça algum dia desses de surpresa só pra que eu demonstre uma dessas tais reações estranhas. Eu até quero muito que isso aconteça e que eu sinta de novo uns dez por cento do que eu sentia daquilo tudo. Eu já tomei uns dois comprimidos e já mudei alguns trocentos canais de televisão. É pedir demais que eu abra aquela porta e dê de cara com ela dormindo no sofá com as malas desfeitas, ou é melhor acender outro cigarro e colocar de vez na minha cabeça que ela não vai mais voltar?

Daniel bovolento

quinta-feira, 4 de abril de 2013

A mulher certa

Você somente se apaixona pela mulher que lhe tira do sério. Você somente se apaixona pela mulher que vive brigando. Você somente se apaixona pela mulher que sabe provocá-lo. Você somente se apaixona pela mulher que desafia sua opinião. Você somente se apaixona pela mulher que leva desaforo para sua casa. Você somente se apaixona pela mulher que não pode dominar ou convencer. Você somente se apaixona pela mulher que faz tudo diferente de sua mãe. Você somente se apaixona pela mulher que jamais entende, que é um mistério, que é motivo de metade da conversa com seu terapeuta. Você somente se apaixona pela mulher que teima com sua memória. Você somente se apaixona pela mulher que tem a coragem de ser espontânea, não se acovarda com o que os outros vão pensar. Você somente se apaixona pela mulher que derruba suas mentiras. Você somente se apaixona pela mulher que conhece todos os seus segredos. Você somente se apaixona pela mulher que cala sua boca com um beijo. Você somente se apaixona pela mulher que não tem medo de criticá-lo. Você somente se apaixona pela mulher que implica quando começa a beber e pede para ir embora quando a festa estava ficando boa. Você somente se apaixona pela pessoa errada. A mulher de sua vida é a melhor de suas inimigas. Como não consegue vencê-la, traz para seu lado. Fabrício Carpinejar

Dane-se a Fila

O que sou não deve ser regra de convivência. O que sou morre comigo. Descobri que amar não é fazer com que o outro siga meu ritmo insano. Isso é ditadura. Amar não é puxar a namorada para o nosso fôlego, não é arrancá-la de seu temperamento e forçar semelhanças. Isso é indiferença. Amar não é punir atrasos e castigar descompassos. Isso é tortura. Amar não é ameaçar com frases egoístas como “A fila anda”. É o contrário: é perder o lugar na fila, é ceder seu lugar na fila, é regressar ao início da fila. Amar é estranhamente recuar. É encurtar as pernas para melhor passear, alongar os braços para melhor entrelaçar os dedos. O apaixonado não impõe seu temperamento, acostuma-se a caminhar diferente, olhando ao lado. O lado passa a ser a nossa frente. Quem nos ladeia é o nosso horizonte. Surgirá um contratempo de sua companhia, uma dificuldade inesperada e se verá contrariando seus planos para ajudar – só tem pressa quem não tem urgência. Amar é proteger mais do que avançar, é cuidar mais do que atingir objetivos, é apoiar mais do que se vangloriar da distância. Foi a minha avó Mafalda que me explicou. Ficava muito irritado pelo seu trotear na Rua Corte Real. Era velhinha, manca e, além de tudo, distraída. Ela me obrigava a participar de sua andança fisioterápica depois do almoço. Um quarteirão correspondia a queimar calorias de quatro quilômetros. – Meu neto, é bom acompanhar um familiar doente, pois amar é ir aos poucos, é lentidão por fora e interesse por dentro – ela dizia. Não fazia lógica para mim. Amar parecia voar, correr, atropelar. Amar significava velocidade, superação, afoiteza. Amar traduzia liberdade, transgressão, não se intimidar com os limites. Eu me enganei, vó. Seu andar miúdo, pequeno, de bengala, pesando cada pé no chão, me ofereceu uma aula emocional. Nenhum casal corre de mãos dadas. Amar é aguardar se necessário, voltar atrás se preciso, criar um novo passo para atender os dois. Se fui apressado para conquistar minha mulher, agora devo ser lento, estar com ela é meu destino. Fabrício Carpinejar